Crítica

Em O Fantasma do Futuro, longa-metragem baseado no cultuado mangá de Masamune Shirow, orgânico e inorgânico mais que coexistem. A fusão da criação do homem com a obra da natureza – ou de alguma divindade, de acordo com a crença –, representa o futuro da espécie, única possibilidade de acessar plenamente as supervias de dados que interconectam pessoas e máquinas. Força muscular, inteligência, capacidade de raciocínio, são alguns dos atributos, essencialmente humanos, potencializados pela esfera cibernética. Sendo assim, uma ciborgue quase completa como a protagonista do filme, a Major Motoko Kusanagi, não é uma anomalia no tecido social em 2029, mas um símbolo dos tempos em que o virtual e o real se relacionam umbilicalmente, acabando por fundir-se a fim de oferecer um panorama integral da experiência de estar vivo. Líder tática da chamada Seção Nove, ela começa a sentir um eco em seu “fantasma”, denominação para a alma que habita a carcaça projetada.

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O diretor Mamoru Oshii cria um espetáculo, primeiro, visual. A técnica minuciosa se encarrega não apenas de apresentar toda a riqueza desse mundo futurista, cuja concepção pode ser considerada pós-cyberpunk, mas de estabelecer o ambiente necessário para abrigar as questões existencialistas e filosóficas que começam a surgir após a primeira missão. Nela, a Major assassina um diplomata a sangue frio, explodindo sua cabeça e expondo sua estrutura vertebral, para logo depois sumir por conta de uma camuflagem termo-óptica. A trama ganha contornos mais densos, com pormenores complexos e totalmente arraigados à estrutura daquela coletividade moralmente decrépita, a partir do instante em que a Major e seus colegas, especialmente Batou, começam a seguir as pistas de um caso potencialmente mais importante do que suas iniciais implicações políticas deixam ver. Em meio a uma grave crise interna, eles se deparam com o projeto 2051, mais conhecido como Mestre das Marionetes.

Apontado diversas vezes pelas irmãs Lilly e Lana Wachowski como uma das principais inspirações para a criação da Saga Matrix, O Fantasma do Futuro carrega em sua essência discussões acerca da condição humana, do que realmente nos torna relevantes enquanto espécie. Quando não em ação, mostrando toda sua letalidade para fazer prevalecer a ordem dos superiores, a Major é surpreendida por vozes que a fazem duvidar da integridade daquilo considerado estritamente verdade. Um dos expedientes utilizados pelo Mestre das Marionetes é enxertar memórias falsas em seus capangas, para que eles não tenham exata consciência, por exemplo, quando estiverem cometendo algum delito. O fantasma (a alma) habitante em cada um, a priori, só pode ser gerado pelo orgânico, ou seja, está fora do alcance da inteligência artificial. Portanto, ao saber da possibilidade de uma ruptura dessa regra até então pétrea, a Major é tragada para um redemoinho de perguntas sem aparente resposta.

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Em menos de 90 minutos, Mamoru Oshii redefine os parâmetros das animações japonesas, instaurando um novo degrau de excelência, algo semelhante ao que o colega Katsuhiro Otomo havia feito um pouco menos de dez anos antes com Akira (1988). A conversa em que o Mestre das Marionetes reivindica ser reconhecido como forma de vida, sob a atenção da Major envolvida no caso, é um daqueles momentos ímpares, equivalente ao diálogo do astronauta com HAL 9000, icônico computador de 2001: Uma Odisséia no Espaço (1968), também autoconsciente, sobretudo da, em tese, impossibilidade de tornar-se imortal. A ação, a violência, o intrincado labirinto político, tudo em O Fantasma do Futuro está subordinado à observação da existência em seu sentido amplo, inclusive no que concerne ao hibridismo que amalgama carne e circuitos, propondo uma dimensão virtual para a realidade palpável, não como oposição ou mero complemento, pois semelhante em valor.  Em suma, uma obra-prima.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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