Crítica

Durante grande parte dos anos 1980, Robert Altman poderia ser considerado um nome ‘em baixa’ no cenário hollywoodiano. Após o sucesso alcançado no início da carreira com títulos como M*A*S*H (1970) e Nashville (1975) – ambos indicados ao Oscar, por sinal – ele acabou se perdendo em obras autorais, que não encontraram respaldo na crítica, e muito menos junto ao público. Sua saída foi voltar ao básico, em uma tentativa de se reinventar. E para garantir essa liberdade, era preciso se envolver com projetos mais baratos e sem grandes expectativas. Entre estes estava O Exército Inútil, longa filmado inteiramente em um único cenário e com apenas 6 atores no elenco. A proposta minimalista, pelo jeito, deu resultado: selecionado para a mostra competitiva do Festival de Veneza, saiu de lá com o prêmio de Melhor Ator, entregue ex aequo ao conjunto de intérpretes – decisão inédita até então.

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Logo após filmar James Dean: O Mito Sobrevive (1982), que contava praticamente apenas com mulheres em cena, Altman inverteu a proposta e convocou para O Exército Inútil exclusivamente homens. Os dois projetos, no entanto, prepararam o terreno para Honra Secreta (1984), no qual ele seria ainda mais radical – neste há apenas um ator em todo o filme. Os três, aliás, fazem parte de um conjunto de trabalhos de forte pé teatral do cineasta, interessado mais em investigar as atuações e as relações entre os personagens do que, necessariamente, narrar uma história com início, meio e fim. E para quem conhece a fundo a obra do diretor, sabe que esta nunca foi, de qualquer forma, uma das suas maiores preocupações. Afinal, para ele sempre foi mais importante o sentido e os significados destas interações, e menos suas motivações originais.

Em O Exército Inútil, temos um grupo de militares em um alojamento à espera de uma convocação. Estamos nas vésperas do conflito no Vietnã, e a qualquer momento um chamado pode aparecer – ou não. Essa espera constante vai mexendo com os nervos dos soldados, assim como com seus superiores. Porém, se esses estão afetados a ponto de nem mais se reconhecerem, agindo como crianças despreparadas, aqueles que ainda mantém as expectativas por algum tipo de ação que valide suas presenças seguem se agarrando em verdades envelhecidas em busca de uma interação frágil, que no menor sinal de desgaste será colocada em dúvida.

Este debate entre eles surge quando um dos rapazes revela, após muitas piadas e suspeitas, que é gay. Seus amigos mais próximos não querem acreditar, preferindo tratar a novidade como mais um chiste. Um novato, que está ali de passagem, no entanto, enxerga ali uma oportunidade de aproveitar sexualmente do jovem, deixando claro não se preocupar com o que possam pensar dele. Mas o peso de uma ligação dessas é muito forte. Logo no começo, um outro recruta, obviamente também homossexual, tenta se matar, sem sucesso. É ajudado pelo colega, que, pelo que se percebe, acredita estar mais preparado para lidar com sua própria condição. Mas nem sempre o desenrolar dos fatos se dá da maneira como os imaginamos em teoria.

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Matthew Modine é o nome do elenco que mais se destacou no futuro, mas o visual de bom moço não lhe garantiu o melhor personagem. A este coube a performance de Mitchell Lichtenstein, que voltaria a interpretar um rapaz gay na comédia O Banquete de Casamento (1993), de Ang Lee. É ele que percebemos ir da tranquilidade à insegurança, da certeza ao medo. Michael Wright também compõe com precisão um tipo ameaçador e, ao mesmo tempo, amigável, enquanto que David Alan Grier é mais reação do que iniciativa. Robert Altman combinou um grupo de jovens atores, todos em início de carreira, e lhes entregou um filme forte, difícil e de final contundente. O Exército Inútil é um longa que parece perdido dentro das filmografias dos envolvidos, mas que merece um resgate à altura dos méritos envolvidos.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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