Crítica

Em sua carreira tão rica quanto conturbada como diretor, Orson Welles realizou obras-primas incontestes, como Cidadão Kane (1941) e A Marca da Maldade (1958), e outras em princípio incompreendidas, mas que com o tempo ganharam o mesmo status, como A Dama de Shanghai (1947). Entre os citados e outros títulos amplamente reconhecidos no universo cinéfilo, Welles dirigiu este que hoje talvez seja seu longa menos celebrado - apesar de ter sido um dos raros sucessos comerciais da filmografia do cineasta à época de seu lançamento - e também pelo qual, dizem, o próprio Welles não tinha grande apreço. Essa falta de carinho provavelmente se deva ao fato de ser um trabalho feito sob encomenda para o estúdio, no qual Welles aparentemente abria mão de sua marca autoral para atingir os objetivos comerciais dos produtores. E é essa dicotomia criativa que torna o resultado de O Estranho tão fascinante.

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Sem dúvidas Welles utiliza uma narrativa bem mais convencional do que de costume para contar a história de Wilson (Edward G. Robinson), um investigador da Comissão de Crimes de Guerra que está à procura de Franz Kindler, um dos nazistas idealizadores do holocausto, que teria apagado sua identidade e estaria vivendo nos Estados Unidos. Para encontrar Kindler, Wilson liberta um de seus comparsas, Konrad Meinike (Konstantin Shayne), que o leva à pequena cidade de Harper, Connecticut, onde vivem a jovem Mary Longstreet (Loretta Young) e seu futuro marido, o professor Charles Rankin (o próprio Welles), que Wilson acredita ser Kindler em sua nova identidade. Apesar desta trama sobre a paranoia do nazismo ser comum a diversas produções lançadas próximas ao fim da Segunda Guerra Mundial, Welles consegue, através dos detalhes, transformá-la em uma obra com seu inconfundível estilo.

Welles parte de uma situação bastante hitchcockiana, em que o mistério inicial – a identidade do nazista fugitivo – é revelado logo no primeiro ato, tanto para o espectador quanto para a maior parte dos personagens. Isso faz com que o suspense seja construído em torno das próximas ações do vilão e das consequências que elas terão à única personagem que ainda não conhece o segredo, no caso, Mary. Para criar esta atmosfera, Welles se utiliza de alguns elementos do film noir – ainda que deixe outros tantos de lado, o que não torna possível classificar o longa com um exemplar puro do gênero – em particular o magnífico jogo de luz e sombras de sua fotografia em preto e branco, que gera momentos de grande beleza visual, como o de Mary caminhando através do cemitério coberto de neve, usando um longo e escuro casaco.

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A ambientação interiorana também ajuda na concepção de um clima intimista para o suspense, com seus cenários – em especial a igreja – e figuras peculiares, como o Sr. Potter (Billy House), o dono do restaurante/loja de conveniência local que desafia todos os clientes para o jogo de damas. Deste cotidiano de cidade pequena, onde todos se conhecem e fazem fofocas sobre a vida dos outros, Welles também extrai um tom cômico que serve de alívio nos momentos exatos. O humor cínico ainda encontra um ótimo interlocutor na figura simpática e sempre competente de Edward G. Robinson, que rouba quase todas as cenas com o seu Inspetor Wilson.

Como dito anteriormente, o convencionalismo domina a trama que não possui grandes reviravoltas e sofre com alguns problemas de falta de verossimilhança: a facilidade com que Kindler consegue sua nova identidade, incluindo o emprego como professor, a ingenuidade de algumas conclusões feitas por Wilson – como quando lembra repentinamente de uma frase de Kindler/Rankin sobre Marx - e até mesmo a presença de Welles como um alemão. Na pele do personagem, o cineasta não convence o tempo todo, apesar de nunca chegar a comprometer, conseguindo ao menos transmitir o tom ameaçador necessário. Já a bela Loretta Young se encaixa perfeitamente no papel da esposa apaixonada e em perigo, que reluta em aceitar a verdade sobre o marido.

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Se existem fragilidades evidentes no roteiro, Welles faz questão de driblá-las com a perfeição de sua execução. A virtuose técnica do cineasta enche a tela em todas as sequências, desde aquelas aparentemente mais simples, como o momento simbólico em que rompe o colar de pérolas de Mary ou da tensão criada quando Kindler tenta enterrar o corpo de Meinike na floresta enquanto os estudantes realizam a “corrida do papel”, até as cenas mais complexas, como o primeiro atentado na escada e todo o clímax passado na torre do relógio da igreja. Este final catártico merece um destaque especial, pois resume toda a capacidade de Welles como criador de imagens inesquecíveis, num trabalho exemplar de enquadramentos e decupagem. São momentos como este que fazem de O Estranho o tipo de filme que comprova a genialidade de seu realizador. Pois além das obras-primas unânimes, a genialidade de um cineasta é notada quando este é capaz de transformar um argumento inconsistente, e que em outras mãos não passaria de algo banal, em uma obra marcante e com assinatura própria.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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