Crítica

A literatura da moral, que tem seu estandarte na máxima de que tudo é permitido caso Deus não exista, encontra em O Ato de Matar um concorrente visual – a grande prova à qual talvez jamais consiga objetar.

Ao tomar conhecimento dos acontecimentos na Indonésia, em 1965, quando civis considerados comunistas foram brutalmente assassinados em nome da liberdade do país, o diretor Joshua Oppenheimer decidiu produzir um documentário. Se há algo, porém, que se esvai com dificuldade, esse é o medo. Com os parentes das vítimas intimidados a falar, restou a Oppenheimer tomar o caminho contrário e entrevistar os torturadores. No contato com um dos assassinos, que recordava o passado monstruoso com orgulho, o filme encontrou a sua dimensão, fruto da impossibilidade e do absurdo.

Durante duas horas – os 40 minutos a menos da versão final substituem com acerto a abrangência pela intensidade – alternamos entre a encenação das mortes para um filme, desculpa criada para conseguir a adesão dos assassinos, e as entrevistas com os mesmos. Somos levados, assim, para o inacreditável contraste do ato de matar. Ao rever uma das cenas, Anwar Congo, o principal e mais interessante dos personagens, fica estarrecido ao ver a cor da calça usada na filmagem – jamais usaria branco, comenta – não pelo que cometera. No centro das ações, onde esperamos encontrar o núcleo duro da culpa, nada; ou apenas o vazio ilusório revestido pela certeza, o que é a mesma coisa.

Matar alguém é o pior crime que pode existir. Mas é tudo questão de não se sentir culpado; de encontrar para si a desculpa correta. Quando percorremos incólume o caminho do autoengano – e o filme nos mostra como os torturadores o seguem com facilidade –, então estamos perdidos, porque a humanidade se perdeu. Pela revelação à qual nos sentencia, mais forte por ser natural e espontânea, é que O Ato de Matar passa longe de um documentário sobre o ocorrido na Indonésia em determinada época e toma a potência de um relato pessimista sobre a condição humana, mais impactante que qualquer assombro literário ou genealogia da moral.

Sem a violência visual, mas psicologicamente agressivo, o filme evolui dando possibilidade a interpretações marginais. Não é necessário muito esforço para transformar as declarações a favor do ex-presidente dos Estados Unidos George W. Bush e a relação imposta pelos torturadores, declaradamente influenciados pelos filmes de gênero norte-americanos, em um discurso tendencioso contra o capitalismo. Os símbolos estão presentes, sem dúvida, mas inverter a relação fundamental é incriminar o álibi a fim de atenuar o criminoso.

Em determinado momento, conhecemos o grupo paramilitar Pancasila Youth, que tem mais de 3 milhões de seguidores prontos a apoiar o regime militar a qualquer custo. Assistimos aos seus rituais e escutamos os discursos. É impossível não se constranger com a retórica populista e fascista. Percebemos, ali, como nossas convicções – basicamente as convicções democráticas – são frágeis; que defendê-las não é concordar com um regime conveniente, espraiado após a Revolução Francesa, mas salvaguardar o outro e a nós, salvaguardar o frágil fio de humanidade que nos une. Entre uma declaração e outro, o filme nos arrasta para uma realidade paralela, a algo próximo da experiência imaginária de um mundo em que os nazistas triunfaram.

Ainda que a engenhosidade documental de Oppenheimer deva ser destacada – o ritmo da câmera e a indução às declarações são duas ferramentas manejadas com destreza – está no capturado o seu grande trunfo. Em uma época de documentários que necessitam implodir a verdade para se fazerem representativos, O Ato de Matar triunfa justamente pela objetividade, por não manejar a imagem como forma frívola de discurso, mas usá-la no melhor molde dos retratos de guerra: impactante, desolador e sem beleza.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Tem formação em Filosofia e em Letras, estudou cinema na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acumulou experiências ao trabalhar como produtor, roteirista e assistente de direção de curtas-metragens.
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