Crítica

Uma das experiências mais belas e marcantes a chegar às telas nacionais em 2016 é Na Ventania, filme que entra em cartaz no primeiro semestre, mas desde já pode-se afirmar que deverá ser lembrado com entusiasmo no final do ano, na hora dos balanços e avaliações destinadas a apontar os melhores da temporada. Trabalho de estreia do jovem Martti Helde, este longa tem como principal característica o mesmo denominador comum a todos os clássicos prematuros de cineastas em início de carreira que, com o desenrolar de suas filmografias, apenas confirmam o talento prometido: fala-se aqui de algo caro ao realizador, abordando temas e elementos fundamentais na construção de sua identidade e caráter. E ao focar tão intimamente no pessoal, o que alcança foi absolutamente universal.

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Rara produção estoniana a chegar ao circuito comercial brasileiro, Na Ventania tem como ponto de partida o holocausto russo durante a Segunda Guerra Mundial, quando Stalin assume o poder e decide ‘limpar’ – ou seria melhor dizer, eliminar – todos os resquícios dos demais povos agora sob o comando da União Soviética. Com a invasão, os locais são obrigados a partirem em comboios rumo a destinos nada auspiciosos. Erna e a filha são enviadas para a Sibéria, enquanto que o marido é mandado para a prisão. Separados, a única forma dela resistir ao frio extremo e à minguada ração diária de apenas um pedaço de pão era através das cartas que escrevia ao companheiro, sem nem ao menos a certeza de que ele um dia ele as leria de fato. Resta a ela, portanto, apenas a esperança.

A rotina de Erna, as misérias pelas quais ela e a filha passam, as parcas conquistas que lentamente começam a surgir e a leve mudança que os anos vão lhe oferecendo – até, enfim, à morte do ditador e o início de alterações mais radicais – somente puderam chegar até os dias de hoje graças a esses regulares relatos que ela promovia através de suas missivas. Foi pelo acesso a esse material que Helde, ele próprio filho de um dos tantos desgarrados do seu país, pode enfim encontrar uma voz que oferecesse luz a uma dor dilacerante comum a todos em seu país. Porém, mais do que um discurso poderoso e uma narrativa absolutamente envolvente, dona de recursos que arregimentam de forma irreversível a atenção do espectador e surpreendem pela torcida que despertam mesmo diante do inevitável, está na forma escolhida pelo cineasta para trazer à tona tal episódio que seu filme se sobressai em uma condição arrebatadora.

Martti Helde, mesmo não tendo completado ainda 30 anos de idade, percebe com exatidão que o cinema é a arte da imagem, e por isso toma o maior dos cuidados para que a exuberante fotografia em preto e branco de Erik Põllumaa – curiosamente, também em um dos seus primeiros esforços profissionais – se revele como uma preciosidade encontrada não em sótãos empoeirados ou em álbuns de retratos já esquecidos pelo tempo – se bem que poderia tranquilamente serem essas as suas origens – mas em museus ou galerias de arte. Na Ventania é inteiramente composto por imagens estáticas, mas não imóveis. A cena é congelada, cada um destes fatos devastadores ficam eternizados na retina dos personagens e espelhados no olhar da audiência. A câmera desliza entre eles, revelando multiplicidade de emoções, sentimentos e dores. Somos colocados mais próximos do que nunca, em uma posição tão incômoda quanto privilegiada. Mas, acima de tudo, necessária.

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Erna está distante de tudo e todos. Sozinha no mundo, tem apenas o céu como companhia. E deste, além da luz cada vez mas escassa, parece encontrar alento somente na brisa que corre dentre todos, como o único elemento verdadeiramente livre. Ouvimos sua voz, ficamos a par de seus sofrimentos e expectativas. Deslizamos ao seu lado, por pouco não sentimos o cheiro do seu suor. O voyeurismo cinematográfico é explorado ao máximo justamente pela ausência dos movimentos e pela exaltação de cada gesto, ação ou posicionamento. Na Ventania mostra que por mais parado que se esteja, há ainda aquilo que se move, talvez imperceptível, mas mesmo assim constante. Podem vir de direções opostas, como muitos torcem, ou seguirem caminhos contrários, como vez que outra acontece. Mas de uma forma ou de outra estão vivos, e no final, isso é tudo que importa.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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