Crítica

Injustamente presa por 30 anos, Horacia (Charo Santos-Concio) sai da cadeia buscando, primeiramente, retomar o contato familiar, sobretudo com os filhos, ainda muito pequenos na época da sua condenação por assassinato. O tempo é um dos principais elementos dos quais se vale dramaticamente o filipino Lav Diaz, não à toa cineasta notório pela extensa duração de seus filmes. Dentro do conjunto, aliás, A Mulher Que Se Foi pode ser considerado “curto”, com seus 228 minutos. Não deixa de ser curioso, portanto, que o início da trama se desvele com tanta objetividade, a despeito até mesmo das longas tomadas que antecedem a soltura da protagonista, importante para que tenhamos logo uma amostra de sua tendência maternal, atributo capital às suas ações e reações. Preocupada no presídio em alfabetizar as demais detentas, ela ganha a liberdade assim que o erro é desfeito pela confissão da colega. Uma vez na rua, além de reconectar-se com os seus, também traça minuciosos planos de vingança.

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O que primeiro salta aos olhos em A Mulher Que Se Foi é a belíssima fotografia em preto e branco, a cargo do próprio Lav Diaz, marcada por uma inteligente variação de níveis de contraste. Seguindo no que tange à imagem, a imobilidade é uma regra pétrea quebrada apenas próximo ao final do longa-metragem, na breve cena, sem muita importância, registrada com uma nervosa câmera na mão. O que verdadeiramente dá dinamismo à narrativa é a soma da movimentação dos personagens no quadro e a montagem que trata de deslocar nosso olhar. Os enquadramentos de Diaz são precisos, milimetricamente pensados justamente para que não seja necessário alterar a perspectiva até cada espaço se esgotar como ambiência. Horacia passa a interagir com uma gama de desvalidos enquanto inicia, sob pseudônimo, a espreita a Rodrigo Trinidad (Michael De Mesa), figurão das redondezas, exatamente o homem que, motivado por ciúmes, armou irresponsavelmente para sua condenação infundada.

Embora transcorra em certos momentos de maneira excessivamente lenta, recorrendo à reincidência de desdobramentos e/ou possibilidades, A Mulher Que Se Foi sobressai, além da exuberância estética, por conta da exposição incisiva da sociedade brutalmente estratificada das Filipinas. Isso ocorre a partir do momento em que Horacia começa a se relacionar mais comumente com Hollanda (John Lloyd Cruz), um travesti que precisa frequentemente de sua ajuda, consequência de ataques epiléticos; com uma mendiga afeita a “denunciar” a presença de “demônios” entre os vizinhos; e com vendedor carismático apelidado de corcunda, que ganha a vida comercializando diariamente uma iguaria típica na fronteira simbólica entre ricos e pobres. Por falar nesse local, ele representa o abismo social que separa as pessoas de acordo com seus ganhos. Se de um lado temos barracos e gente passando fome, do outro, logo adiante, ricaços ostentam seu patrimônio, bem como a segurança que o dinheiro compra.

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A constância de notícias relativas à grande onda de sequestros nas Filipas ajuda a tornar mais nítido o desenho da coletividade local, já que a violência é um dos efeitos colaterais da desigualdade que Lav Diaz deflagra, ora nas bordas no itinerário de Horacia, ora frontalmente, com a constatação da penúria. A Mulher Que Se Foi é uma obra para ser sorvida com parcimônia, ao sabor do ritmo cadenciado proposto por Lav Diaz. Ainda que determinadas passagens se alonguem demasiado, no geral a contemplação vale o quanto pesa. Proibitiva para alguns, a duração do filme se faz sentir apenas em virtude de dispersões ocasionais, mas nada que extirpe o prazer da experiência. Valorizada pela beleza da imagem, temos uma série de manifestações ligadas ao instinto materno da protagonista. Ela acolhe os marginalizados, devolvendo a eles, nem que por poucos instantes, a dignidade há muito negada pela miséria material e existencial, recebendo em troca tudo o que cada um pode oferecer.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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