Crítica

A rotina de prostituição de três jovens marroquinas é mostrada inicialmente em Much Loved com uma falsa aura de celebração ao hedonismo. Da maquiagem à consumação do sexo com homens endinheirados, geralmente árabes, passando pela algazarra a caminho das festas – subterfúgio para mitigar a situação em que verdadeiramente se encontram – elas demonstram uma felicidade superficial. Não é gratuita a predileção do diretor Nabil Ayouch por acompanhá-las de perto, com a câmera flagrando intimidades relativas à profissão e os primeiros indícios de que a euforia é apenas máscara. Noha (Loubna Abidar), uma espécie de líder calejada pela experiência, a despeito da pouca idade, cobre o cabelo com o lenço que a tradição exige para visitar a família envergonhada de seu meio de subsistência. A partir desse instante, fica evidente a intenção de evitar traços de moralismo ou algo que o valha. O olhar do diretor é afetuoso, sem qualquer condescendência e tampouco julgamento moral.

much-loved-papo-de-cinema-01

Na medida em que a trama avança, conhecemos um pouco mais a respeito de cada uma delas. Randa (Asmaa Lazrak) tem dificuldades para concretizar os programas, constantemente arrumando briga com potenciais clientes, além de sonhar com a ida à Espanha para morar com o pai. Já Soukaina (Halima Karaouane) mantém relacionamento paralelo com um homem totalmente apaixonado, avesso ao seu ganha-pão, mas que sempre retorna para demonstrar carinho. Toda vez que elas são contratadas para algum evento, o diretor Nabil Ayouch aproveita para fazer do trajeto um momento de exposição das mazelas que as circundam. O entorno degradado, então, se soma às suas misérias. Muito longe de ser denúncia ou enaltecimento da prostituição, Much Loved é um retrato minucioso e contundente da posição da mulher dentro daquela sociedade, semelhante a outras tantas, que ainda relega o feminino a um espaço de coadjuvância, quando não de submissão às vontades do homem.

Noha é uma personagem de força admirável. Além de encarar o preconceito materno de cabeça erguida, de suportar humilhações e maus tratos, de ter vilipendiada sua integridade física e moral, ela frequentemente segura a barra das mais novas. A cena na qual elas dão de comer a um menino de rua que aluga seu corpo, ainda franzino e combalido pela fome, para turistas europeus é uma prova do círculo de solidariedade que se forma em torno dessas figuras marginalizadas. Para além das desavenças diárias, Noha, Randa e Soukaina permanecem unidas, enfrentado episódios complicados. A argamassa que as une é o afeto. Nabil Ayouch faz de Much Loved um filme dramaticamente intenso, cuja excelência parte da maneira como as personagens são enquadradas num ambiente hostil aos seus desejos. Corajosas como são, elas abraçam as oportunidades ao alcance, lutando bravamente para alterar o curso de um destino que não se apresenta favorável às suas aspirações.

much-loved-papo-de-cinema-02

O acolhimento de um quarto elemento nessa família estabelecida sem laços sanguíneos reforça, principalmente, o senso de proteção de Noha. Privada da convivência com o filho, excomungada por quem lhe botou no mundo, ela direciona sua energia maternal às demais meninas. Much Loved não se preocupa em criar oposições, está longe do maniqueísmo, pois tenciona a deflagrar a complexidade decorrente das decisões. As pessoas em cena nem sempre são condicionadas pelas próprias vontades e, por isso mesmo, entendem a necessidade de adaptar-se às contingências para sobreviver. Diante de uma ameaça real, ao invés de acovardar-se, Noha decide proporcionar às colegas algo semelhante a um conto de fadas, com direito a chofer e tudo. Boas pitadas de fantasia e escapismo são imprescindíveis para degustar a rotina com menos amargor. O idílio é passageiro, elas sabem, mas serve para recarregar as baterias antes da volta à dura e crua realidade.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deMarcelo Müller (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *