Crítica

A certa altura da projeção de Manter a Linha da Cordilheira Sem o Desmaio da Planície, o poeta carioca Armando Freitas Filho, figura aqui documentada pelo cineasta Walter Carvalho, fala sobre sua paixão pelo cinema de Godard. Além de afirmar que a obra do francês permanece tão relevante quanto nos tempos da Nouvelle Vague, Freitas Filho lembra do impacto sentido ao assistir Week-End à Francesa (1967), com ênfase para uma cena em particular, na qual um baterista toca seu instrumento em meio a um grupo de revolucionários acampados em uma floresta. É esta sequência que inspira o autor a gravar seus poemas acompanhado pelo som de uma bateria, fazendo questão de que a música não seja apenas incidental, mas que se confunda com as palavras que profere.

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Este trecho, ainda que ocupe poucos minutos na tela, serve como uma síntese não só do processo criativo de Freitas Filho, como também da proposta do documentário de Carvalho. A desconstrução da linguagem cinematográfica realizada com pleno domínio da mesma por Godard, ou mesmo o improviso mesclado à técnica apurada de um baterista de jazz, encontram um espelho na “bagunça organizada” do poeta, com suas centenas de cadernos de anotações repletos de rasuras e ideias incompletas, e também no descompromisso de Carvalho com uma estrutura narrativa formal. Pois a ideia do cineasta não é a de traçar uma linha cronológica da carreira do documentado ou apenas nos apresentar sua personalidade. É uma mescla dos dois, mas, essencialmente, uma tentativa de expor a visão de Freitas Filho sobre o que é poesia e sobre ser poeta.

Os depoimentos do autor de livros como Palavra, de 1963, cuja figura se faz presente em praticamente todas cenas do longa, surgem ora de modo completamente natural e espontâneo – o momento em que conscientemente veste uma camiseta com a ilustração de uma caneta, para minutos depois perceber que a mesma está furada e pedir para trocá-la – ora teatralizada, como quando Carvalho posiciona a câmera na perspectiva das teclas enquanto o poeta bate à máquina, ou ainda quando o cineasta entrevista Freitas Filho tendo um hospital em ruínas como cenário, numa clara alusão à hipocondria do autor, que constantemente faz comentários bem-humorados sobre o assunto.

Independente do tipo de abordagem dos depoimentos, estes sempre exalam uma sinceridade incontestável. Freitas Filho, com toda sua gagueira e comportamento excêntrico, fala quase sempre em forma de poesia, de metáforas. Não por preciosismo, mas por que essa é sua verdade. Seus simbolismos linguístiscos são sempre tão verdadeiros quanto a deliciosa conversa sobre “o tudo e o nada” que tem com Ferreira Gullar, ou quanto a emoção que sente ao lembrar do último telefonema que fez a sua melhor amiga, Ana Cristina Cesar (1952 – 1983), pouco antes do suicídio da autora. O momento seguinte, em que ouve a leitura de uma carta enviada pela poetisa, acompanhando de um silêncio doloroso, é profundamente tocante.

A família – o filho, a atual esposa e o fracasso dos dois casamentos anteriores – também é elemento bastante presente no longa, assim como a admiração de Freitas Filho por Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto. A epifania no funeral de Drummond – de que no enterro de um poeta as palavras chegam antes do corpo – é um dos grandes achados do documentário. Outro exemplo do olhar atento de Carvalho em busca destes pequenos tesouros líricos está no próprio título do longa, retirado de um dos rascunhos não utilizados de Freitas Filho. No mesmo instante em que lê a frase, o cineasta percebe que ela pode dar nome a seu trabalho, que foi filmado ao longo de vários anos.

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Como não poderia deixar de ser, Carvalho também insere poesia em suas imagens, como nas passagens da atriz que tenta alcançar um objeto voador, como o poeta que busca alcançar a inspiração e não deixar que as ideias fujam. Ideias que podem surgir de qualquer lugar ou situação, acendendo e apagando como a chama de um isqueiro, afirma Freitas Filho. Para o autor, a poesia deve ser encarada como uma batalha, e por isso ele retorna a sua principal fonte de armamento, citando Drummond: “Lutar com palavras é a luta mais vã / Entanto lutamos mal rompe a manhã”. Com sua máquina de escrever, cara a cara com a folha de papel em branco, Freitas Filho luta com a palavra e pela palavra, mesmo em um mundo que insiste em banalizá-la.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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