Crítica

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Lúcia McCartney, Uma Garota de Programa (1971) foi a primeira e uma das mais bem-sucedidas adaptações da obra de Rubem Fonseca para o cinema. Dirigido por David Neves, o filme une dois contos de Fonseca – Lúcia McCartney e O Caso de F.A. – para abordar o universo da prostituição no Rio de Janeiro do início da década de 70. Sua protagonista, a Lúcia McCartney do título (interpretada por Adriana Prieto), é uma jovem alucinada por Beatles que mora com uma amiga mais velha quase irmã (Isabella) e que, na primeira metade do filme de Neves, se apaixona perdidamente por um cliente, mas não é totalmente correspondida. Na segunda parte da narrativa, Lúcia (agora já atendendo pelo nome Elizabeth) some de cena e o jogo se inverte: agora acompanhamos um cliente (Nelson Dantas) apaixonado por ela, que tenta desesperadamente “resgatá-la”, com a ajuda de um amigo advogado (Paulo Villaça), da vida de prostituição.

Em parceria com Fonseca, que é também roteirista do filme, Neves usa a junção desses dois contos para acompanhar, portanto, o amadurecimento da protagonista, ou mais precisamente sua adesão ao cinismo: de garota ingênua que acredita no amor, Lúcia passa a mulher pragmática, sobrevivente na selva carioca. Na trajetória de sua personagem central, Lúcia McCartney, Uma Garota de Programa guarda semelhanças com o ótimo Bruna Surfistinha (2011), filme brasileiro recente que também acompanha a jornada de uma prostituta, da ingenuidade ao total pragmatismo. No entanto, enquanto o diretor desse último, Marcus Baldini, aposta numa linguagem tradicional, Neves parece tentar um flerte com o cinema sessentista de Jean-Luc Godard, na leveza, nas brincadeiras visuais e referências metalinguísticas (além das várias intervenções gráficas na imagem, há o mote muito bem sacado de que a prostituição e o cinema se aproximam na busca de ficção pelos homens), nas citações da cultura pop, além, claro, de uma protagonista que remete às personagens femininas godardianas.

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Mas se a matriz estética de Lúcia McCartney é francesa, tornando-o um daqueles adoráveis filhos brasileiros da Nouvelle Vague (cujo principal exemplar é, provavelmente, Todas as Mulheres do Mundo, de 1966, de Domingos Oliveira), seu diretor mostra bastante desenvoltura como cronista do cotidiano do jovem carioca de classe média, num momento em que o país se modernizava sob a ditadura militar e absorvia múltiplas influências culturais externas. Próximo do Cinema Novo ao longo de sua carreira como crítico e cineasta, Neves fez em Lúcia McCartney um filme bem coerente com a segunda fase desse movimento, mais atenta que a primeira às questões das classes médias urbanas.

É muito interessante observar como o filme extrapola a história de sua protagonista e acaba lançando um olhar quase antropológico para a vida no Rio de Janeiro dos anos 70, com a câmera de Neves trafegando de maneira despojada pelas ruas da cidade. Isso acontece inclusive – talvez até mais, na verdade – na segunda metade da narrativa, quando o personagem de Paulo Villaça tem de gastar as solas dos sapatos para concretizar seu plano de ajudar o amigo F.A. a “libertar” sua amada. A forma como o sujeito enxerga a própria profissão (“advogado não trabalha com a cabeça, trabalha com os pés”, diz ele em determinado momento) dá ao diretor o pretexto perfeito para explorar a cidade com sua câmera.

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Ainda que não seja um dos maiores exemplares do Cinema Novo brasileiro, Lúcia McCartney é um filme gostoso de ver, que funciona muito bem como registro tanto de aspectos culturais e comportamentais da juventude carioca do início da década de 70, quanto da influência exercida pelo movimento da Nouvelle Vague sobre cineastas do país nesse mesmo período.

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é um historiador que fez do cinema seu maior prazer, estudando temas ligados à Sétima Arte na graduação, no mestrado e no doutorado. Brinca de escrever sobre filmes na internet desde 2003, mantendo seu atual blog, o Crônicas Cinéfilas, desde 2008. Reza, todos os dias, para seus dois deuses: Billy Wilder e Alfred Hitchcock.
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