Crítica

Lançado em 1971, não é raro ouvir Laranja Mecânica ser citado ainda hoje em rodas de conversa, em aulas, em críticas cinematográficas, em filmes. Mais: a obra é uma presença constante na cultura pop, provendo material descoladinho para camisetas, buttons, mochilas, tatuagens e tudo o mais que se puder imaginar. Não por acaso, uma cópia digital do filme está fazendo a alegria dos fãs no Cinesesc de São Paulo, onde o longa está em cartaz. Público não falta. Mas, afinal, por que o filme chama atenção ainda hoje, mais de 40 anos após ser lançado?

Em primeiro lugar, por seu protagonista. Alex DeLarge (um esperto trocadilho em inglês com “Alexandre, o Grande”) foi provavelmente o papel da vida de Malcolm McDowell, que brilha absoluto. Líder de uma gangue que ocupa seu tempo espancando pessoas, estuprando, roubando, usando drogas e cometendo todo tipo de atrocidade, é difícil imaginar que o público possa se apaixonar por tal figura. Mas é inevitável: em algum momento você se verá enfeitiçado pelo crápula e torcendo por ele em seu (nada fácil) périplo.

Dono de gostos bastante peculiares, que combinam Beethoven e cobras, Alex é o centro gravitacional do filme e uma metáfora “do outro”, do observado, nesta grande parábola que é Laranja Mecânica.

É impossível também ignorar a direção de arte. Conduzida por Russell Hagg e Peter Sheids, ela constrói um imaginário futurista só possível na década de 70 do século XX, incluindo cores gritantes, paredes metalizadas, mobília arredondada e objetos de cena com forte carga simbólica (a colcha da cama de Alex lembra laranjas cortadas e as obras de arte sempre têm referências sexuais).

O figurino acompanha a viagem e traja os personagens com qualquer coisa que faz lembrar um encontro entre a ficção científica da década de 50, o estilo característico dos Anos 70 (com cabelos que poderiam estar num clipe do Abba) e um colorido lisérgico, que as vezes briga com o do cenário. Curioso notar que a gangue protagonista abdica das cores que impregnam o resto dos “mortais” para se vestir do mais imaculado branco, interrompido apenas por penduricalhos que lembram globos oculares e sangue. Um belo tempero que Milena Canonero dá ao filme.

Combinadas, estas duas instâncias compõe o imaginário dos fãs e que faz de Laranja Mecânica um símbolo do deboche social, do “ser cool”, da afronta ao sistema estabelecido e do flerte com o passado sem tirar os pés do “futuro”. Um conjunto de elementos que casa muito bem com o visual das tribos urbanas atuais, do hipster ao emo, do clubber ao steampunk.

Mas é na direção de Stanley Kubrick e em seu roteiro (adaptado do romance de Anthony Burgess) que está a chave para o sucesso. Kubrick soube tirar do livro apenas o que interessava ao filme, excluindo inclusive um epílogo de tom moralista que privaria a obra de praticamente toda a sua força. É também dele o mérito de conduzir a equipe que realizou tudo o que foi descrito até aqui, gerando uma combinação única entre o retrô e o futurista e equilibrando empatia e agressividade com precisão cirúrgica.

Sua decupagem nervosa serve completa e unicamente à trama, indo de longos (e tensos) planos-sequência, como os da abertura, até a montagem frenética e eisensteiniana da cena em que Alex ouve Beethoven em seu quarto. Usando apenas planos estáticos de estatuetas da paixão de Cristo, o cineasta faz com que o espectador veja na tela um sangrento balé. Os enquadramentos também falam por si e, às vezes, introduzem uma camada extra de significado à cena.

Por fim, a forma como Kubrick resolve visualmente as mensagens que quer passar beira o genial, tamanha a inspiração. Seja colocando o Ministro do Interior para, literalmente, “alimentar o mal”, seja na cena em que o governo demonstra, num teatro, a “cura de Alex”, é impossível não universalizar as cenas e se pegar observando tudo aquilo em dias e contextos atuais. Laranja Mecânica fala de delinquência, de “maioridade penal”, de “cura gay”, de eugenia, de educação, de violência, do papel da mídia e da política para a degradação social. E não será um espanto se, no futuro, o filme seguir atacando temas que sequer saibamos possíveis hoje.

É por isso que Laranja Mecânica continua lotando salas de cinema: porque mostra as consequências de se tentar resolver artificial, forçosa e violentamente questões orgânicas (daí o nome do filme). De uma forma universal o bastante para extrapolar seu mundo, Kubrick criou um clássico que desafia e desafiará gerações em sua compreensão do certo, do errado e da miríade de nuances que habita entre os dois extremos.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
é jornalista, mestre em Estética, Redes e Tecnocultura e otaku de cinema. Deu um jeito de levar o audiovisual para a Comunicação Interna, sua ocupação principal, e se diverte enquanto apresenta a linguagem das telonas para o mundo corporativo. Adora tudo quanto é tipo de filme, mas nem todo tipo de diretor.
avatar

Últimos artigos deDimas Tadeu (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *