Crítica

Rita (Julia Palha), protagonista de John From, é uma adolescente como outra qualquer. Aliás, a despeito do registro das especificidades das pessoas em cena, bem como dos grupos que elas representam de certa maneira, o diretor português João Nicolau sai-se muito bem no sentido de capturar o constante e comum estado de tédio praticamente inerente à transição da infância à vida adulta. Ele acompanha o cotidiano repetitivo, os deslocamentos mais ou menos previsíveis de Rita e de sua inseparável amiga Sara (Clara Riedenstein). Elas passam os dias conversando sobre garotos, debatendo acerca de frivolidades e de tópicos sem grande importância se descontextualizados desse mundinho. A paradoxal vivacidade jovial, que viceja nas frestas da pasmaceira, é expressa pela tonalidade dos cenários. Até o elevador do prédio, que serve de espaço para troca de bilhetes confidentes, chama atenção por ser de um vermelho berrante.

Existe uma mitologia própria em John From, cultivada pela juventude como forma de demarcar território, de diferenciar-se. O mais reincidente dos elementos que demonstram isso é o “oráculo” consultado pelas meninas, nada mais que um aparelho de mp3 recheado de músicas. O título da canção que surge aleatoriamente é encarado como resposta a questionamentos que dão conta de amores, relacionamentos com a família, e por aí vai. João Nicolau introduz tal expediente como uma brincadeira, algo, em princípio, semelhante a um Bem Me Quer, Mal Me Quer, mas que reforça os contornos alegóricos quando o filme deixa para trás sua vocação realista e adentra completamente num campo simbólico. Essa virada narrativa só acontece após testemunharmos toda sorte de subterfúgios dos quais a protagonista lança mão para se aproximar de Filipe (Filipe Vargas), um vizinho bem mais velho.

John From se propõe a fazer uma radiografia bastante peculiar dos anseios adolescentes, sem incursionar por um caminho professoral ou dar-se a convenções. Por exemplo, é tratado com a devida naturalidade o desejo de Rita pelo homem mais velho. A presença desse fotógrafo cujas lentes se voltam às coisas da Melanésia – região da Oceania, no extremo oeste do Oceano Pacífico e a nordeste da Austrália –, induz a protagonista a interessar-se por uma vivência totalmente diferente da sua, ainda que semelhante no que diz respeito ao colorido. A partir desse movimento de aproximação dela com a tradição oceânica, o longa-metragem flerta frequentemente com a possibilidade considerável de imbricar culturas a fim de chegar a um hibridismo, resultante da mescla de urbano e aborígene. Isso fica evidente no que sobrevém à bruma responsável por alterar o itinerário e instaurar tudo no âmbito figurado.

Assim, possuindo momentos bem distintos, John From mostra personagens curiosos transitando por situações tão banais quanto valiosas naquele contexto. Pode parecer caprichoso todo o esforço que Rita faz para estar próxima de Filipe, ou mesmo despropositadas as brincadeiras que conservam generosas doses de ingenuidade, marca registrada da amizade dela com Sara. Todavia, essa construção inteligente do dia a dia aparentemente ocioso e desprovido de graça, mas verdadeiramente fervilhante de indagações e aspirações, é uma das forças motrizes do filme, além de preparação do terreno à mudança que torna extremamente crível, entre outras coisas, plantas tomarem rapidamente a varanda, pessoas trajadas como nativos do lado oposto do planeta, e um amor improvável, antes apenas idealizado, ser embalado por Chorando se Foi, sucesso do grupo brasileiro Kaoma.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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