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Sinopse

Em Nova York, o fotógrafo profissional L.B. Jeffries está confinado em seu apartamento por ter quebrado a perna enquanto trabalhava. Como não tem muitas opções de lazer, vasculha a vida dos seus vizinhos com um binóculo, quando vê alguns acontecimentos que o fazem suspeitar que um assassinato foi cometido.

Crítica

Assistir a um bom filme é como experimentar uma reação química. Um longa-metragem providencia um canal de informações visuais, sonoras e temáticas enquanto o espectador reage a estas através da atenção. Já nos anos cinquenta Alfred Hitchcock se preocupava com esta relação quase amorosa que uma produção exige de seu observador e, seis anos após realizar o excepcional Festim Diabólico (1948), onde através de sua técnica brincava não só com a origem teatral da trama, mas com a janela para um outro mundo representada pela tela de um cinema, o cineasta entregava à história desta arte Janela Indiscreta, uma obra que, através de um delicioso suspense, discute justamente a responsabilidade que é colocada no colo do espectador para que um filme seja bom, no fim das contas.

Com a perna quebrada, o fotojornalista Jeff (James Stewart) se vê preso em seu apartamento por semanas, tendo como distração apenas a grande janela e a visão que esta proporciona da vida de seus vizinhos. Mas Jeff não é um mero observador, vazio e suplicando para que o público o preencha com seus próprios gostos, medos e suspeitas. Nossa identificação com ele é imediata por: estar em um estado vulnerável, o que sempre é eficiente quando é preciso uma rápida identificação com qualquer personagem; e, justamente, por ser uma figura que demonstra personalidade, como qualquer outra, pois ele tem uma história de vida, uma profissão, amigos, um relacionamento, um chefe, etc. Ou seja, é fácil o espectador confiar e se identificar com Jeff.

Deste modo, nosso protagonista logo tende a escolher, entre as várias opções que se apresentam, o tipo de história que vai querer acompanhar - tal qual alguém que vai ao cinema e escolhe o filme que quer ver. Assim, o fotógrafo passa os olhos pela comédia vivida pelo casal que dorme na escada de incêndio do apartamento, pelo drama introspectivo que vive o solitário tocador de piano, pelo romance conflituoso da sua janela mais próxima, pela tragicômica situação da mulher que finge ter um encontro todas as noites, pela bailarina e seus muitos pretendentes e, por fim, pelo casal que, entre discussões e um desaparecimento, sugere um suspense irresistível – claro, afinal, estamos falando de um protagonista de Hitchcock.

E através de sua janela, usando seus conhecimentos prévios e com a ajuda da namorada Lisa (Grace Kelly), Jeff passa a “assistir” a um mistério envolvendo um possível serial killer. Não à toa aquele plot vem a tocar a sua própria história de maneira literal, provando a alegoria que o longa-metragem faz com a relação obra e espectador. Em certo momento, é apenas natural que o diretor enquadre o personagem de Stewart usando nada menos do que uma câmera para continuar a acompanhar estas histórias.

Jamais abandonando o cenário do apartamento de Jeff para contar sobre o desaparecimento da Senhora Thorwald, Hitchcock – que faz uma de suas habituais pontas relâmpago aqui também – arrisca-se poucas vezes a enquadrar a vizinhança de ângulos que sugerem uma saída do cenário principal, que é, afinal de contas, a poltrona de seu cativo e, como tal, não deve ser deixada antes que se resolva o enigma. Este, contagiante, muito mais pelo interesse que temos em ver nosso “detetive” descobrir a verdade do que pela verdade em si do que se passa na janela do casal Thorwald.

Entre uma espiadela e outra, Janela Indiscreta nos apresenta diálogos hipnotizantes sobre a ética de se poder ver a vida de outras pessoas e vasculhar seus segredos através de suas janelas, aberturas que provém apenas imagens entrecortadas da verdade naquele lado. O que, em um estudo mais profundo, poderia abrir um debate complexo sobre como a forma como vemos uma imagem pode mudar nossa perspectiva sobre o seu teor, o que inevitavelmente levaria a uma discussão sobre a indústria da informação, do jornalismo tendencioso, etc. Só mais uma prova de que o cinema bem feito se mantém atual e relevante, mesmo sessenta anos após a sua realização.

Falando em datas, é importante ressaltar a fotografia do longa-metragem em questão que, na época, sem o auxilio de efeitos visuais, enquadrava sem medo a gigantesca teleobjetiva usada por Jeff, sem temer o reflexo da câmera em sua lente. Com a mesma competência, o design de produção cria uma vizinhança que mistura de maneira crível os diversos lotes em uma estranha composição aconchegante e convidativa e, mesmo povoado por seres tão tristes, solitários e trágicos, o pátio das janelas soa como um ponto em comum nas vidas e nos problemas de todos estes indivíduos.

Janela Indiscreta também garantiu a Alfred Hitchcock a quarta indicação ao Oscar de Melhor Diretor, além de trazer Grace Kelly e James Stewart de volta ao seu comando, ambos adequadamente céticos e calculistas em um filme que, como não poderia deixar de ser, é um suspense admirável que volta a refletir não só todo o domínio que o seu mestre tinha da arte de fazer cinema, como também toda a sua paixão pela mesma e pela dedicação que se pode mostrar por ela. Sempre que tiver a oportunidade, pegarei meus binóculos e sentarei em frente à janela para bisbilhotar o que aprontava um dos mais geniais cineastas em sua própria época.

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é formado em Produção Audiovisual pela PUCRS, é crítico e comentarista de cinema - e eventualmente escritor, no blog “Classe de Cinema” (classedecinema.blogspot.com.br). Fascinado por História e consumidor voraz de literatura (incluindo HQ’s!), jornalismo, filmes, seriados e arte em geral.
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