Crítica

Em tempos em que Turquia e Alemanha dividem parte das manchetes dos noticiários mundiais devido ao seu posicionamento diante da crescente onda de imigração de refugiados na Europa, é interessante compartilhar o olhar de duas jovens cineastas alemãs de descendência turca sobre esta situação política e social. Biene Pilavci e Ayla Gottschlich são as jovens em questão, que em Istambul: Crônica de uma Revolta mostra a viagem que fizeram até a Turquia no verão de 2013 para acompanhar uma grande mobilização popular contra a destruição do Parque Gezi, em Istambul, que daria lugar a um nababesco conjunto comercial. No entanto, o que começou como uma manifestação contra um projeto imobiliário, acabou se tornando um ato generalizado de repúdio à política de repressão praticada pelo presidente turco, Tayyip Erdogan, que teve repercussão até sua reeleição em 2014.

Abrindo o documentário com imagens dos confrontos postadas nas redes sociais, a dupla de cineastas deixa claro que, apesar do envolvimento de diversos setores da sociedade, estão tratando de uma revolta essencialmente jovem. Esta noção de um movimento da juventude fica evidente quando Pilavci e Gottschlich chegam ao Parque Gezi e começam a identificar os diferentes grupos que formam a multidão manifestante. Dos muçulmanos anticapitalistas aos descendentes de armênios, a maior parte daqueles que protestam é formada por estudantes ou jovens adultos, incluindo seus líderes. Historicamente, este é um fator comum a quase todos os movimentos políticos e sociais, mas o reconhecimento disto pelas cineastas e, por consequência, sua identificação com as pessoas retratadas pelo longa, torna o relato mais pessoal.

Logo de início, também, Pilavci e Gottschlich afirmam não ser totalmente imparciais neste relato, algo que apesar de ir contra o que se imagina como “pureza” em um documentário, ao menos demonstra sinceridade das realizadoras com público. Assim, Istambul: Crônica de uma Revolta volta seu olhar exclusivamente para o lado oprimido buscando a montagem de um panorama mais amplo da revolta, através das histórias particulares de algumas figuras. E as figuras que as cineastas encontram são interessantes, como o jornalista que perde o emprego por não querer alterar os fatos em suas matérias sobre os protestos ou sua namorada, que larga um emprego público como engenheira, pelo fato do governo não apoiar o desenvolvimento de projetos de energia sustentável, para se tornar dançarina.

01-istambul-cronica-de-uma-revolta-papo-de-cinema

Já outros personagens apresentados, como o ativista político de raízes armênias e o estudante de origem curda, trazem um elemento de grande peso e que poderia ser melhor trabalhado pelo longa. São eles que, ao visitarem os povoados de suas famílias, abrem espaço para uma análise do passado político conturbado da Turquia, que desde a sua formação – ainda nos tempos do Império Otomano – sempre foi marcado por conflitos de grandes proporções, que deixaram marcas ainda hoje sentidas. Ao revisitar estes episódios históricos, Pilavci e Gottschlich se deparam com algo que desconhecem, fora de sua realidade, mostrando que mesmo próximas – geogr.aficamente ou pelos laços sanguíneos – por vezes se sentem completamente distantes das pessoas que retratam. Não à toa as comparações que fazem com suas vidas “normais” na Alemanha são constantes.

Ainda assim, a distância de realidades não impede que as cineastas se coloquem em meio à ação dos protestos. Isto permite que o filme capte o senso de comunhão criado entre os grupos manifestantes – como quando a líder muçulmana relata seu contato com o movimento LGBT, ou ainda na comoção gerada pela morte de um jovem de 15 anos que passou meses em coma – bem como a tensão latente em relação à constante repressão policial. Em determinado momento, Pilavci é até mesmo atingida na cabeça por uma pedra, colocando sua vida literalmente em risco. Isso faz com que as realizadoras realmente tomem partido nesta luta e retratem o outro lado, o presidente Tayyip Erdogan, superficialmente, como uma figura desprezível, que abusa da violência policial, incentiva o machismo, impede a liberdade de imprensa, etc.

02-istambul-cronica-de-uma-revolta-papo-de-cinema

Nada disso é infundado, os próprios discursos de Erdogan só reforçam essa imagem, mas um aprofundamento um pouco maior neste outro lado, principalmente daqueles que apóiam o presidente, poderia enriquecer o debate. No final das contas, mesmo não sendo totalmente imparciais, Pilavci e Gottschlich também não realizam julgamentos absolutos. Existe uma vontade em conhecer todas as vozes que se revoltam, por mais que a visão das cineastas em relação a algumas destas vozes seja conflitante. Mas, como afirma um dos entrevistados, sua luta não é contra os conservadores, mas para que todos sejam aceitos na sociedade turca. Ainda que com um olhar estrangeiro e tendo a segurança de poderem pegar um avião de volta ao conforto de seus lares, Pilavci e Gottschlich realizam um trabalho bem intencionado, que partilha deste sentimento de conquista da liberdade e igualdade.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
avatar

Últimos artigos deLeonardo Ribeiro (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *