Intervenção

14 ANOS 96 minutos
Direção:
Título original:
Gênero: Ação, Drama, Policial
Ano: 1219
País de origem: Brasil

Crítica

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Sinopse

Dois policiais honestos que trabalham em uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) no Rio de Janeiro, arriscam suas vidas diariamente por acreditarem que podem fazer a diferença na vida dos moradores da comunidade através das propostas sustentadas pelo projeto.

Crítica

A atuação da polícia militar na cidade do Rio de Janeiro é frequentemente alvo de críticas por parte da imprensa e de outros setores representativos da sociedade carioca. Não são poucos os relatos de batidas sanguinolentas em comunidades periféricas, favelas e demais áreas distantes das consideradas nobres (e intocáveis) da Cidade Maravilhosa. Há muita discussão em torno da utilização sistemática da corporação como um braço executor do Estado, por sua vez, tido por parte significativa da opinião pública como genocida da população marginalizada (e prioritariamente negra). Intervenção tem como compromisso primordial mostrar que os homens e as mulheres fardados também sofrem, que não são homicidas desumanos e que agem sob o guarda-chuva de uma estrutura precarizada. Para isso, o cineasta Caio Cobra elege não uma, mas duas figuras que podemos encaixar no arquétipo do herói trágico. Uma delas é Douglas (Marcos Palmeira), chefe de uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) que precisa lidar diariamente com um sem número de dificuldades e complexidades. A outra é Larissa (Bianca Comparato), a representante da lei e da ordem que tem seu idealismo esmerilhado pelas coisas que acontecem cotidianamente num espaço repleto de contradições e simbologias da nossa coletividade deixada à míngua. Uma pena que o roteiro assinado por Laura Malin, Rodrigo Pimentel e Gustavo de Almeida passe muito longe de fazer um diagnóstico consistente e forte.

Aliás, o mesmo Rodrigo Pimentel que é um dos roteiristas de Intervenção é o ex-capitão do temido BOPE que escreveu Elite da Tropa, best-seller que serviu de base para Tropa de Elite (2007). E há várias similaridades entre os dois filmes, embora a intensidade dramática (mesmo a que deságua em controvérsias) abundante no longa de José Padilha seja escassa na obra dirigida por Caio Cobra. Em ambas as produções temos denúncias do sucateamento da segurança pública do Rio de Janeiro – fala-se muito da falta de equipamentos adequados, das obsolescências utilizadas contra o armamento pesado dos traficantes, etc. Também nos dois há um personagem forçado a “amadurecer” a sua visão inocente sobre a corporação. Mathias (André Ramiro) em Tropa de Elite, e Larissa em Intervenção são esses sujeitos que, de certa forma, representam a perspectiva ainda “virgem” do espectador. Embora eles tenham passado por treinamentos, estudado internamente a corporação e que supostamente tenham plena consciência de como algumas coisas fundamentais acontecem, passam por um batismo de fogo diante da realidade profunda da polícia. Mas, enquanto Tropa de Elite tinha um mentor cuja tragédia muitas vezes era turvada pela reprodução da lógica de abordagem agressiva e desumana (o Capitão Nascimento), em Intervenção o “professor” é um sujeito desiludido que negocia com traficantes e relativiza até os procedimentos legais se com isso garantir a segurança das pessoas em volta.

Intervenção é uma tentativa de mostrar o cotidiano penoso da polícia em áreas dominadas pelo tráfico de drogas e outros delitos (como o roubo de cargas). No entanto, várias questões são abordadas e desenvolvidas displicentemente. Uma delas é o fato de Larissa ser moradora de uma região periférica comandada pela bandidagem. Além da cena dela tirando a farda do varal para não denunciar a sua atividade como policial, nada mais é feito com esse dado que poderia conferir espessura à sua tragédia pessoal (representativa de boa parte da força policial carioca). Outro elemento bastante inocente nesse filme é a oposição entre as irmãs Larissa e Flávia (Dandara Mariana). A primeira é agente da lei e acredita piamente na missão, no discurso do “fazer a diferença” que a torna inequivocamente uma heroína em potencial. A segunda trabalha numa ONG e tem uma visão oposta da polícia militar e das famigeradas UPP. Todas as discussões entre elas são embates simplistas e sem profundidade, uma coleção de lugares-comuns e associações frágeis entre causas e efeitos. O roteiro provoca o choque ideológico, forçando uma distensão ao mesmo tempo coletiva e familiar, já que elas representam polos opostos quando o assunto é a segurança pública do Rio de Janeiro. Na verdade, Flávia apenas existe para jogar na cara de Larissa as verdades dolorosas e estabelecer um contraponto substancial.

Porém, mesmo que em Intervenção exista personagens que colocam em xeque a abordagem policial em favelas, o filme é uma demonstração de empatia pelos fardados que também sofrem. E isso poderia servir para tornar multifacetada uma discussão que frequentemente descamba às oposições sem muitas nuances. Como quando o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini foi expulso do Partido Comunista por defender publicamente os policiais contra os estudantes de esquerda, chamando a atenção para o fato de que os homens e as mulheres fardados eram proletários e seus confrontadores supostamente progressistas vinham de uma burguesia privilegiada. O filme de Caio Cobra nem chega perto de propor uma provocação desse calibre, principalmente pelo mencionado e constante processo de simplificação. Basicamente, Larissa precisa descer (rápida e esquematicamente) ao inferno para ter seus olhos abertos – e como toda heroína trágica, sacrificar-se a fim de manter a integridade APESAR do sistema. E Douglas, o outro sujeito cujo protagonismo ensaia angariar a nossa compaixão, é aquele herói que não tem mais jeito, alguém tão contaminado pelo sistema que não lhe restam alternativas. Pena que seja tudo tão explicadinho e forçado (como a história da policial que morre grávida acentuando o que já era dramático). A todo momento a trama nos diz: os policiais são bons, o sistema é que os corrompe. Mas, mesmo o herói consciente se refere à ronda como “caçar vagabundo por aí”. Isso poderia ser uma baita e sintomática contradição? Claro, se a análise geral fosse menos reducionista e rasa.

Marcelo Müller

Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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