Crítica

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Acompanhar a carreira de Júlio Bressane, mais especificamente a estreia de seus filmes em festivais, tem algo de constante: a sala cheia no início da sessão, a linguagem fílmica peculiar, e a sala vazia ao final da sessão. Diretor prolífico, com uma carreira de mais de duas dúzias de filmes, mais conhecido recentemente pelos trabalhos Cleópatra (2007), A Erva do Rato (2008) e Educação Sentimental (2013), Bressane chega às telas em 2015 exercendo o mesmo estilo experimental e de baixo custo do início da carreira, quando iniciou no ofício em meados dos anos 60.

O longa, que de longo tem pouco, umas vez que ultrapassa minimamente uma hora de duração, inspira-se livremente no conto O Assassino Desinteressado Bill Harrigan, do escritor argentino Jorge Luis Borges. Escrito pelo diretor e pela tradicional parceira Rosa Dias, o roteiro captura a história literária em linhas gerais, espelhando-se no espírito de coragem, violência e culpa do personagem borgiano a fim de recriá-lo sob o casal de Gabriel Leone (ator do televisivo Verdades Secretas, em estreia no cinema) e Marjorie Estiano (O Tempo e o Vento, de 2013, e Malu de Bicicleta, de 2010).

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No conto, o personagem, tomado pela realização plena dos seus desejos, sente-se enojado com o resultado das ações e comete um crime. Em Garoto, a trama é transposta para Leone e Estiano presos no bucolismo romântico da floresta. Logo no início do filme, Marjorie estende a mão como a convidar o parceiro a ingressar na aventura. A posição sui generis da câmera faz com que o convite seja amplo, servindo tanto para o espectador quanto para Leone. A diferença está em quem pode efetivamente comandar a ação. Falsamente despretensiosa e propositadamente dúbia, a cena dá início a um jogo de atividade e passividade, em que o filme não se dobra às vontades ou necessidades do espectador. Acostumado a ser contemplado no cinema - “agora, um momento de ação”, “agora, uma música para deixar a trama mais fácil” -, Bressane entrega no filme dois aspectos claros da vida, a falta de controle sobre o tempo e a limitação das decisões.

O avançar da trama faz com que a garota convide Leone a conhecer uma amiga. Surge então a personagem de Josi Antello em uma casa confortável. Segundo Estiano, o que sabemos dessa relação é unicamente que a mulher a ajuda muito. A cena que se segue, assim como a morte de Josi, desviarão o olhar da câmera. Mais uma vez, o diretor não entrega ao público o banal e o óbvio. O acontecimento recoloca o casal em caminhada. Contudo, o interior está refletido no exterior, e a consequência do ato brutal do garoto está, como na passagem bíblica de Adão e Eva, em retirar-lhes a vegetação abundante da floresta, a sugestão do futuro, e, entregar-lhes no lugar apenas a aridez de um presente pedregoso.

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A experiência como crítico ensina-nos que o público deixa a sala por inúmeros motivos. Desde os mais fúteis, como quando o filme serve para preencher um buraco na agenda, até os mais nobres, quando diretor e espectador colocam-se na posição de privilegiado. Neste lugar, ambos esperam o agrado. O diretor espera que o público fique - ou, em casos patológicos, saia e fale mal da obra - e o espectador espera que o filme o agrade. E não há qualquer agrado em Bressane, o que talvez justifique tamanha irritação e incômodo gerado por seus longas. O desterro ao qual o casal é destinado, rumando sem objetivo até ser absorvido pela dimensão do tempo é a experiência intuitiva e plástica de um processo que esvazia os sentidos cristalizados - como deve ser a relação amorosa, de que forma a culpa se desenvolve, etc - para dar espaço a criações pessoais e íntimas - como o filme  que surge ao final, muito menos para Bressane, que a essa altura pouco importa,  do que para os espectadores resilientes, abertos ao desconhecido.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Tem formação em Filosofia e em Letras, estudou cinema na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acumulou experiências ao trabalhar como produtor, roteirista e assistente de direção de curtas-metragens.
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