Crítica

Quando não há mais ninguém ao nosso lado, é possível seguir adiante sem alguém que lhe dê amparo? Para alguns essa é a única realidade, mas para tantos outros qualquer oferta, por pior que seja, pode ser melhor do que nada. É mais ou menos o que acontece com a protagonista de Garotas, drama francês escrito e dirigido por Céline Sciamma. Para quem não está ligando o nome à pessoa, trata-se da autora do emocionante Tomboy (2011), longa premiado no Festival de Berlim. E se antes seu foco estava direcionado a uma menina decidida a viver como garoto, agora sua atenção está em uma jovem que precisa, por força das circunstâncias, ter uma postura que muitos assumiriam como masculina, ainda que siga se esforçando para não perder sua feminilidade. Como se pode perceber, a questão dos limites entre gêneros continua tendo apreço especial na obra da diretora. Porém de uma forma menos ligada à sexualidade, e mais à postura que assumimos diante o mundo.

Marieme (a revelação Karidja Touré) é uma adolescente como tantas outras, que vai à escola e cuida dos irmãos mais novos quando a mãe trabalhando. Seus problemas é que a diferem das demais meninas de mesma idade: um irmão mais velho, já metido em pequenos roubos e outras complicações com bandidos da região e com a polícia, e a falta de referências familiares. Ela está em uma fase crítica, em plena adolescência, e ao mesmo tempo em que quer ser menina e brincar de bonecas, também está preocupada em atrair a atenção dos rapazes e conquistar o respeito das colegas. Uma informação nesse ponto, no entanto, é importante para uma melhor contextualização: estamos falando de um grupo de jovens negros em uma França cada vez mais intolerante com os estrangeiros, preconceituosa e extremista. As oportunidades são poucas, e uma vida normal parece cada vez mais distante.

Entre a necessidade de crescer antes da hora, assumindo responsabilidades que, à princípio, não seriam suas, e a possibilidade de seguir desfrutando das inconsequências da juventude, ela encontra um meio de investir na segunda opção ao se unir a um grupo de meninas que, assim como ela, partem para o exagero – na sensualidade, na agressividade, na rebeldia – para esconderem seus próprios medos. Ao lado destes novas amigas, ela se transforma, desabrocha, mas não da melhor maneira. Não que isso seja um julgamento apressado do espectador: a própria personagem se sente constrangida em relação ao que faz e nos momentos em que está sozinha ou quando, raramente, se depara com aqueles com quem convivia em sua vida passada. Conciliar as duas realidades parece improvável, e seguir os passos da mãe – ou do irmão mais velho – seria um retrocesso. Como ir adiante, portanto, se não há mais para onde seguir?

Sciamma tem muito carinho por suas personagens, e maneira como as aborda, sem pressa nem desrespeito, mostra um olhar acima de tudo interessado mais no que sentem e são, e menos em como agem ou no que deixam de fazer. Garotas é um título um tanto equivocado, pois o foco não é tanto o grupo, e sim essa única menina, forçada a ser mulher ao mesmo tempo em que luta com todas as forças para ser jovem. O batismo americano – Girlhood, ou adolescência feminina, em uma tradução direta – acaba sendo até mais apropriado que o original francês (Bande de Filles, ou grupo de meninas). Trata-se do difícil processo de amadurecimento, das escolhas que nos definem e das consequências destas atitudes, que forma quem somos e quem seremos amanhã. Tudo isso sob o ponto de vista de uma protagonista cativante, da qual não queremos tirar os olhos nem nossos pensamentos.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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