Crítica

Um ou dois personagens, um cenário único e muitos diálogos. Estes elementos são mais comumente encontrados no Teatro, mas podem ser adaptados também para o Cinema, desde que o responsável por essa condução seja cuidadoso e experiente. Alguém, por exemplo, como o cineasta italiano Bernardo Bertolucci, diretor de Eu e Você. Baseado no romance de Niccolò Ammaniti – sucesso de vendas na Itália, principalmente entre adolescentes – este mais recente trabalho do realizador de clássicos como O Último Tango em Paris (1972) e o oscarizado O Último Imperador (1987) parece humilde diante de um conjunto de obra tão renomado. No entanto, qualquer um que se dedicar a analisar mais a fundo os principais trabalhos desta frutífera carreira irá perceber não só um notável sentido de coesão dentro de um quadro maior como também uma importante vontade de se reinventar e manter-se atualizado com os tempos contemporâneos.

Bertolucci estava há quase dez anos sem filmar quando aceitou assumir o projeto de Eu e Você – seu último longa havia sido o emblemático Os Sonhadores (2003). Estes dois filmes, no entanto, guardam curiosas semelhanças: possuem jovens como protagonistas e uma ação muito interna, tanto física – enclausurados em apartamentos – como mental. Mas se antes tínhamos dois garotos e uma menina que sonhavam em mudar o mundo, agora o protagonista é um adolescente que, literalmente, não se importa com nada, nem ninguém. Tudo o que ele quer é ser deixado sozinho, esquecido por todos. Ou seja, alcançar uma paz só obtida pelos mais reclusos ermitões. O fato se dá durante a ‘semana branca’, período de férias durante o qual os filhos de famílias abastadas italianas costumam migrar em grupos para as regiões dos alpes, aproveitando a neve e esportes de inverno, como esqui e outras brincadeiras. Lorenzo (um impressionante Jacopo Olmo Antinori) não tem amigos na escola – e nem deseja ter, não há ressentimento nessa questão – mas também não quer ser importunado pelos pais, que se preocupam com o fato do rapaz ser pouco sociável. Assim, ele inventa uma mentira, dizendo que irá viajar. Mas o mais longe que consegue ir é para o porão do prédio onde moram.

Uma vez instalado entre sofás velhos e jogos de videogame portáteis, Lorenzo acredita ter conquistado uma sonhada liberdade. O que ele não esperava é a chegada de surpresa da meia-irmã mais velha, a quem não vê há anos. Olivia (Tea Falco) não se dá com o pai dos dois, muito menos com a madrasta (mãe do menino), e está ali para resgatar antigos pertences que afirma serem seus por herança. O que aos poucos será revelado é que ela está passando por uma grave crise de abstinência de drogas, e os dois terão apenas uma ao outro para vencerem essa semana juntos. Ela tentando reencontrar-se, ele lutando consigo mesmo para dar-se a alguém. Por mais escondidos que estejam, será somente de mãos dadas que ambos perceberão que são mais fortes. Afinal, ninguém nunca está totalmente sozinho.

Há vários elementos curiosos em Eu e Você. Lorenzo é contra a presença da irmã, e Olívia quer sair dali o mais rápido possível. No entanto, as circunstâncias irão se certificar de mantê-los próximos com o passar dos dias, e Bertolucci é hábil em construir essas passagens, sem forçar a barra em nenhum momento. Logo o espectador estará tão envolvido com estes personagens tão singulares que os eventos entre eles terão menos importância do que os olhares, o não dito, os pequenos gestos que se desenvolverão entre os dois. Exibido no Festival de Cannes e indicado em seis categorias no David di Donatello (o Oscar italiano), inclusive a Melhor Filme e Direção, esta é uma obra pequena em formato, mas imensa em conteúdo. Para percebê-la, no entanto, é preciso dedicação, aprofundar-se em suas entranhas e refletir a respeito dessas relações que o acaso une e nada mais na vida consegue separar. Afinal, um instante cheio de significado pode perdurar por uma eternidade, e só quem já passou por isso sabe toda a verdade que essa afirmação contém.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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