Crítica

Dá para ter uma ideia do tamanho da bondade de Perrine (Isabelle Carré) pela maneira como ela administra a presença de um rato em casa. Ao comprar a ratoeira, sua preocupação principal não é exterminar uma praga, mas garantir que a remoção se dê confortavelmente ao intruso, sem machuca-lo. Autointitulada musicista quase profissional, a protagonista de Esperando Acordada passa por uma crise típica à beira dos 40 anos, em virtude das dificuldades financeiras, e, sobretudo, da solidão. Animadora de festas para ganhar a vida, ela é convidada para levar alegria a um asilo no interior da França, isso logo após penar para movimentar uma celebração infantil. Vestida de Darth Vader, perdida a caminho da instituição contratante, acidentalmente faz um desconhecido se estatelar feio numa caçamba de entulhos, o que o deixa em estado de coma, correndo sério risco de morte. A partir daí, sua missão passa a ser cuidar dele, assim, de certa maneira, remediando o erro.

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Sabendo previamente nada a respeito do paciente, Perrine empreende uma investigação, montando o quebra-cabeça cuja imagem resultante será a identidade. Acompanhamos o envolvimento paulatino dela com as coisas de Fabrice (Philippe Rebbot), a vítima imóvel. Nesse sentido, tudo parte da valorização do leilão virtual de um banjo, segue na coincidente oportunidade de substituí-lo na escola de música e, por fim, se solidifica em meio à convivência com o filho dele, que ignora o ocorrido. Tais estágios proporcionam a Perrine a descoberta desse homem em linhas gerais, e a nós, espectadores, o entendimento mais claro acerca da natureza das amarguras que lhe são características, constantes responsáveis pelos sorrisos melancólicos tão bem construídos pela atriz Isabelle Carré como marca registrada da personagem. Esperando Acordada ainda se dá ao luxo de contar com a coadjuvância marcante de Carmen Maura, espanhola que interpreta a carismática administradora do asilo.

A diretora Marie Belhomme conduz a trama com mão leve, fazendo da graciosidade de Perrine, uma figura bastante simpática, o grande atrativo do filme. Determinados elementos auxiliam sobremaneira o delineamento da teia de afetos que gradativamente abraça a protagonista. Um deles é a voz da experiência, vinda justamente da personagem de Carmen Maura, que prega a necessidade de manter-se fiel à verdade. Outro é o extremo oposto, ou seja, a ingenuidade infantil, representada por Arsène (Camille Loubens), o filho de Fabrice com quem Perrine passa a conviver. Em Esperando Acordada a previsibilidade não chega a ser um empecilho, principalmente porque fica evidente desde o começo a intenção de passar ao largo de um registro mais repleto de camadas e complexidades. A jornada de autoconhecimento se configura num deslocamento feito de pequenas e significativas guinadas no cotidiano da mulher amável até mesmo com o roedor que a maioria apenas descartaria com brevidade.

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Esperando Acordada é um longa otimista. Contudo, essa positividade que mexe as cordas subterraneamente é encoberta de início pelas frustrações da protagonista, bem como por sua inadequação. Na medida em que investe energia para cuidar de outrem, tirando o foco da própria angústia, ela se torna mais aberta, inclusive para ser feliz. Não é difícil prever o resultado dessa história de relacionamentos improváveis, já que a diretora Marie Belhomme faz questão de ressaltar as mudanças em curso, preparando a olhos vistos o terreno para os passos seguintes. O bem-estar surge como recompensa a alguém que não penhora valores em função de uma satisfação puramente pessoal e, portanto, egoísta. Essa abnegação que sobrevém à crise de consciência está intrinsecamente ligada à bondade de Perrine, atributo celebrado neste filme como vital no combate aos ideais fundamentalmente individualistas.

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