Crítica

Há poucos meses Porto Alegre recebeu uma mostra com o novo cinema português, elencando alguns títulos de destaque da recente produção lusitana. Uma oportunidade rara para se conferir títulos de alta qualidade e baixa visibilidade - ao menos por aqui. E Entre os Dedos, um dos selecionados, talvez seja o maior dentre estes destaques. Obra de estreia em longa-metragem dos diretores Tiago Guedes e Frederico Serra, o filme assume uma belíssima fotografia em preto e branco para contar uma história de desilusões e sofrimentos que se desenrolam entre vidas aparentemente comuns, mas que após um olhar mais delicado e íntimo se revelam verdadeiramente únicas em suas dores e alegrias.

Esta é a história de Paulo (Filipe Duarte), um operário que perde seu emprego após denunciar irregularidades nos tratos com os funcionários em uma construção. Enquanto procura o que fazer dali pra frente, tenta manejar as insatisfações familiares, com a esposa (Isabel Abreu) e filhos, lidar com amigos irresponsáveis e conciliar as boas intenções da irmã (Lavínia Moreira) solteirona com os rancores e amarguras do pai (Luis Filipe Rocha) que ainda sofre por uma guerra há muito já esquecida. Nenhum personagem está feliz onde se encontra, apenas tenta sobreviver na melhor maneira que lhe convém. Uns disfarçam melhor do que outros, mas em comum todos possuem anseios e vontades que custam se realizar, ao lado de sonhos que mais parecem fantasias do que possíveis visões de realidade.

Além de um visual introspectivo e revelador, auxiliado por uma trilha sonora discreta e um roteiro muito estudado, recheado por diálogos fortes e envolventes, talvez o maior mérito de Entre os Dedos seja o grupo de atores reunidos no elenco. Duarte se revela um protagonista de potencial internacional, carregando consigo uma dureza e uma fragilidade quase inconciliáveis, porém muito bem dispostas nos sentimentos que aos poucos deixa transparecer. Isabel Abreu, por sua vez, apresenta a atuação mais poderosa do projeto, como se fosse um vulcão prestes a entrar em erupção a qualquer momento, tamanha é a luta que  enfrenta internamente sob uma aparente tristeza melancólica. Além dos já citados, outros nomes um pouco mais conhecidos no Brasil chamam atenção, como Nuno Lopes (que esteve em alguns capítulos da novela global Senhora do Destino) e a grande dama do teatro português Eunice Muñoz (que se apresentou ao lado de Eva Wilma no belo texto Madame por palcos de todo o país).

Indicado ao principais prêmios do Globo de Ouro português (o Oscar local), Entre os Dedos foi escolhido como melhor filme nos festivais de Turim, na Itália, e de Coimbra, em Portugal, além de ter ganho os prêmios de Melhor Ator (Duarte) e Ópera Prima (trabalho estreante) no Festival de Cartagena, na Colômbia. São resultados que comprovam a universalidade deste longa, tão nitidamente local e, ainda assim, de identificação imediata, como se transcendesse sua própria origem. Um filme que incomoda e não revela facilmente suas intenções, mas que divide com o espectador análises e ideias. Um sinal de respeito, algo que por si só já merece ser reconhecido.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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