Crítica
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Sinopse
Enterre Seus Mortos, filme de Marco Dutra, se passa na pequena cidade de Abalurdes. É lá onde Edgar Wilson trabalha como recolhedor de animais mortos nas estradas para mantê-las funcionando. Junto dele estão o colega de profissão Tomás, um ex-padre excomungado que distribui a extrema-unção aos seres moribundos que cruzam seu caminho, e sua chefe Nete — com quem Edgar tem um relacionamento incipiente e o desejo de fugir dali. Ao redor deles, o mundo parece dar sinais de que o arrebatamento final se aproxima.
Crítica
A premissa é interessante, ainda que não seja particularmente inovadora. Num futuro utópico no qual o ser humano parece estar destinado à extinção, um culto religioso se apresenta como o último refúgio para aqueles em busca de algum tipo de paz de espírito. Mas para tanto, é preciso acreditar. E esse não é um luxo ao qual Wilson se dá ao direito. O homem que mal dorme, pois o sonambulismo e pesadelos o atormentam até mesmo naqueles momentos que deveriam servir para descanso, quer mais do que tudo se ver livre desse tormento que enfrenta todos os dias ao acordar. Como visto, a união destes elementos poderia resultar em um discurso ao mesmo tempo instigante e perturbador. Nada mais distante, porém, daquilo que é visto em Enterre Seus Mortos. Entre caminhos seguros e ousadias que mais atrapalham do que oferecem novidades, o diretor Marco Dutra demonstra ter perdido a mão justamente no gênero que lhe era tão caro, visto seus trabalhos pregressos. Assim, enquanto aquilo que deveria provocar mudança se revela dispersivo e redundante, estarão nos coadjuvantes ou em possibilidades paralelas as chances – desperdiçadas – do conjunto se elevar para além do mero equívoco passageiro.
É curioso perceber que os problemas de Enterre Seus Mortos começam justamente pela escolha do protagonista. Selton Mello pode tranquilamente ser apontado como um dos atores mais completos do cinema brasileiro contemporâneo. No entanto, aqui oferece uma composição por demais complacente deste personagem, atormentado por um estado de constante dormência – mesmo quando acordado, evidenciado por uma dispersão permanente e uma estafa incapaz de revelar emoções mais fortes. É uma escolha do intérprete, certamente referendada pelo diretor. Assim, o tom monocórdio que assume se transfere à narrativa, impondo ao espectador uma anestesia que irá se refletir no modo como lidar com o que é visto em cena. A repetição descabida do nome ‘Edgar Wilson’ – todos os que o circundam e com ele interagem o chamam assim, com nome e sobrenome, inclusive ao se referirem em sua ausência, sem que essa pompa seja justificada – oferece ao conjunto uma artificialidade que prejudica a compra deste cenário como algo possível, ou mesmo concreto. Se o dilema se mostra falso, como com ele se relacionar?

Edgar Wilson ainda tem pela frente uma missão: convencer a amada a com ele abandonar tudo e partir. Para onde e como, isso pouco importa. Se o fim é inevitável, que este ao menos se apresente de acordo com suas regras, e não como um improvável guru se ofereça a ditar. Ou seja, mais um ruído se verifica. O coletor de animais mortos precisa enfrentar uma lavagem cerebral presente na sociedade como um todo, instigando a revolução de uma só alma para segui-lo em um ato de paixão e rebeldia. Como imprimir esses sentimentos quando sua única expressão é a do tédio e da irrelevância? Marjorie Estiano, atriz mais dada ao impulso e à comoção, tenta oferecer algum tipo de contraponto, mas esse alcança somente um limite. As interações se mostram frágeis, mais forçadas do que fluidas. Entende-se melhor a permanência dela do que o impulso dele em fugir. Melhor se sai a veterana Betty Faria, que do rapaz desconfia de modo quase gratuito, como se escondesse um segredo em meio às suas falas. Mais tempo em tela seria um ganho, não apenas para a estrela de Bye Bye Brasil (1980) e Romance da Empregada (1988), mas para o conjunto como um todo. Outros acertos podem ser percebidos nas presenças de Danilo Grangheia (o padre Tomás) e na assistente interpretada por Gilda Nomacce (muito antes do meme), enquanto nomes de respeito, como Carlos Francisco e Magali Biff, são desperdiçados em participações pontuais e desnecessárias.
Marco Dutra, ao se apropriar do romance de Ana Paula Maia (roteirista de Desalma, 2020-2022), tinha em mãos algo que diretamente se comunicava com muitos dos seus esforços anteriores. Porém, ao invés de se guiar pelo que estava posto, busca tão desesperadamente imprimir caráter autoral que termina por desfigurar o contexto. Perde-se no discurso e nos excessos – efeitos visuais que mais distraem do que colaboram, diálogos tão empostados que afastam as atenções dos seus significados – a ponto de gerar criatura disforme que é quase uma paródia daquilo que poderia ter sido. O desfecho seria risível, se constrangedor não fosse. E entre talentos desperdiçados e junções que não chegam a alcançar a expectativa levantada, Enterre Seus Mortos se apresenta como uma promessa que não se confirma, distante dos potenciais envolvidos e de difícil proveito mesmo para aqueles dedicados ao teatro proposto pelas vontades reunidas, cada qual puxando para um lado, mas nunca em sintonia umas com as outras. Talvez triste, ou mesmo descartável, num viés benevolente. Nem isso, no entanto, pode ser atestado.
Filme visto durante a 19a Mostra CineBH, em setembro de 2025
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