Crítica

Conhecido com o maior festival de cinema fantástico da América Latina, o Fantaspoa é um evento bastante popular entre os admiradores do terror e do suspense. Mas o termo “fantástico” é muito mais abrangente. Tanto que na edição de 2015 um dos títulos exibidos foi a comédia Precoce (2014), sobre um garoto determinado a perder a virgindade que sempre acordava no mesmo dia após cada fracasso no seu intento (geralmente, causados por uma ejaculação prematura). Pois a mesma fórmula retorna em mais um longa selecionado pelos curadores, porém com uma pegada completamente distinta: Encarnação pode ser tudo, menos fonte de riso. Um thriller bem estruturado e intrigante, que pode pecar por uma repetição óbvia e pela falta de um rumo a seguir, mas eficiente na medida em que é hábil em prender a atenção do espectador até sua irregular conclusão.

O recurso do personagem preso em uma falha temporal já foi muito explorado no cinema, desde o incensado Feitiço do Tempo (1993), com Bill Murray, até o recente Antes Que Eu Vá (2017), com Zoey Deutch. Além da ação se repetir diversas vezes em um mesmo espaço de horas, em comum há o fato de que há sempre uma lição a ser aprendida pelo protagonista envolto nesta situação insólita. Desta vez, no entanto, o homem que insiste em acordar – como se fosse uma opção dele, coitado – sempre no mesmo banco de praça precisa, mais do que mudar o próprio comportamento, descobrir quais são as motivações e os interesses daqueles ao seu redor. Afinal, estaria ele enfrentando aquele pesadelo sozinho ou seria ele apenas mais uma peça dentro de uma engrenagem muito maior?

Um homem (Stojan Djordjevic) acorda num susto. Ele está em um banco de rua, no meio de uma praça pública. Pessoas caminham ao redor dele, crianças brincam entre si. Um faxineiro cuida da limpeza, uma garota passa apressada olhando para seus papéis. Uma jovem é assaltada e o larápio passa correndo levando sua bolsa. Trabalhadores vão de um lado ao outro, turistas observam o movimento. Alguns leem o jornal, outros se ocupam vendendo flores. Nada de anormal. Ao menos até quatro desconhecidos, portando máscaras brancas que escondem seus rostos e feições, surgirem determinados vindo em sua direção. Todos estão armados. E não irão descansar até assassiná-lo.

A cada morte – como se vê, o formato remete direto aos videogames – o protagonista ganha uma nova chance para tentar descobrir o que está lhe acontecendo e, principalmente, os porquês de tudo aquilo. Os quatro homens que o perseguem não possuem rosto nem voz, apenas um objetivo – eliminá-lo. A cada sobrevida, algo novo, no entanto, é descoberto. Uma criança lhe oferece um segredo (“eles desconhecem as passagens subterrâneas”), um paralelepípedo é encontrado embaixo do seu banco, um número incompleto lhe é revelado. Numa das fugas, em um prédio abandonado, se depara com um médico que pode – ou não – ser o responsável por sua suposta amnésia. Noutra vez vai parar em um hospital, e até mesmo em um descampado aparentemente deserto. As pistas vão se somando, porém é difícil desenhar um quebra-cabeça que faça sentido. A missão, que para o personagem parece ser decisiva, termina por sobrecarregar o espectador. E mesmo diante de uma duração reduzida – são apenas 82 minutos de projeção – há tanta repetição em cena que o esforço exigido para acompanhá-lo é maior do que a gratificação pela solução do mistério.

O diretor e roteirista Filip Kovacevic, aqui em seu trabalho de estreia, ganha pontos por não entregar tudo de mão beijada. Ele não está preocupado em preencher todas as lacunas, e essa coragem recompensa o espectador mais atento. No entanto, também torna o conjunto mais hermético diante dos meros curiosos. Sentimos a dor e a confusão deste homem, e ficamos nos perguntando como reagiríamos diante da mesma situação – você seguiria pelos mesmos caminhos? Apostaria no acaso? Investiria em possibilidades que parecem esgotadas? O pior, no entanto, é quando a desconfiança parece vir de si mesmo. E quando não se pode confiar em mais ninguém, o único que não pode falhar é aquele na condução, pois é nele que se deposita a credibilidade de toda a história. Infelizmente, é o que aqui acontece, num conjunto que apresenta tantas possibilidades, mas que resigna-se em simplesmente abandoná-las, sem nem um fechamento à altura das expectativas até então levantadas. E um descaso como esse é difícil de ser perdoado.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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