Crítica

Que Eduardo Coutinho foi um dos maiores realizadores do cinema brasileiro, isso é notícia velha. E que sua morte, em fevereiro de 2014, pelas mãos do próprio filho, foi uma tragédia sem igual, também é fato reconhecido. O que poucos sabem, no entanto, é quem era de fato aquele homem por trás das câmeras. Afinal, maior parte da sua filmografia foi composta por um estilo muito particular de documentário, aquele em que o entrevistador tem quase tanta importância quanto o entrevistado. A maneira como ele via as coisas e o modo de fazer cada pergunta invariavelmente tirava o melhor de cada um em que apontava seu foco. No entanto, o tema em discussão era sempre os outros, e nunca ele. Isso muda radicalmente em Eduardo Coutinho, 7 de Outubro, longa não do, mas, sim, sobre o cineasta. E isso já é um feito e tanto.

Em 2013, os responsáveis pelo selo Sesc solicitaram ao diretor Carlos Nader (Pan-Cinema Permanente, 2008) que realizasse um documentário para celebrar um programa pioneiro da instituição: o Trabalho Social com Idosos, que completava 10 anos. A primeira ideia que veio ao cineasta foi se debruçar sobre o homem e a obra do maior documentarista do Brasil que, aos 80 anos, era “o melhor exemplo de uma velhice arguta, sem ser pessimista ou censor de novas tendências”, como argumentou Danilo Santos de Miranda, diretor regional do Sesc São Paulo. Pois então, Eduardo Coutinho, 7 de Outubro é exatamente isso: uma grande e longa entrevista com o homenageado. A ideia inicial era ter-se um vídeo de 15 minutos. A conversa registrada, no entanto, durou mais de 5 horas, que acabou sendo editada em um longa de uma hora e meia e, posteriormente, reduzido para pouco mais de 70 minutos. O filme, enfim, que hoje pode ser visto em lançamento simultâneo nos cinemas e em DVD.

Pela primeira vez do lado de lá das câmeras, Coutinho assume uma postura inicialmente tímida, mas que aos poucos vai se soltando. Ele, que nunca se preocupou em se esconder no anonimato de suas realizações, ao mesmo tempo sempre soube que o foco de seu trabalho eram os outros, e não ele próprio. Pois é o contrário que temos aqui. E se essa noção lhe dá algum tipo de desconforto, este logo é suplantado por sua insaciável curiosidade pelo fazer cinematográfico. Eduardo Coutinho, 7 de Outubro é uma fantástica aula de cinema protagonizada por um dos maiores mestres da nossa produção. É preciso dizer mais?

Sim, pois Nader não se limita a apenas ouvir. No início ele também está um pouco sem jeito, tateando com cuidado cada passo. Divide a responsabilidade da condução da conversa com Coutinho, solicitando-o escolhas aleatórias que indiquem personagens visitados na obra prévia do cineasta. Assim, temos acesso a trechos e depoimentos vistos em Babilônia 2000 (1999), Santo Forte (1999), Edifício Master (2002), Peões (2004), O Fim e o Princípio (2005), Jogo de Cena (2007) e As Canções (2011). E não se trata de cenas de bastidores ou sequências descartadas: são excertos dos próprios longas citados que são comentados pelo diretor, que aproveita para discutir conceitos como a distância entre criador e criatura, a necessidade de um limite criativo, a liberdade restrita em que seu trabalho se desenvolvia, o uso do silêncio e o embate entre a palavra útil e a correta. Os exemplos são mais do que pontais: são fundamentais para um melhor compreensão do fazer cinematográfico de um mestre.

Se há problemas em Eduardo Coutinho, 7 de Outubro estes estão restritos à postura exageradamente reverencial de Carlos Nader, que parece acanhado diante de Eduardo Coutinho. Bom, se esse faz todo esforço que lhe compete para simplificar ao máximo o encontro, percebe-se logo o quão desnecessária é a formalidade que o entrevistador tem ao se dirigir ao entrevistado, por maior que seja sua admiração. Alguns truques de imagens – como durante a discussão a respeito da montagem de seus filmes – e outras citações óbvias que servem apenas para ilustrar o discurso acabam soando redundantes, pois nestes casos o que é dito por si só já é suficiente. Ainda assim, estes são pormenores facilmente suplantados. Afinal, tem-se aqui uma obra imprescindível e uma oportunidade única de acesso a uma das mentes mais brilhantes que já trabalharam à serviço da sétima arte neste país. Coutinho é maior do que esse filme, é claro, mas o que aqui é apresentado é, no mínimo, uma boa introdução ao seu cinema.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *