Crítica

Drown é um drama atípico, não só pela notória desestruturação da abordagem narrativa que apresenta, como também ao retratar de maneira corajosa um ponto de vista pouco explorado no cinema de temática queer: o do homossexual reprimido. Figura recorrente na filmografia da diversidade sexual, geralmente usada como exemplo para um comportamento que deve ser abandonado, aqui, o filme evita buscar soluções fáceis para os sentimentos conflitantes de Len (Matt Levett), ou mesmo teme retratá-lo como uma figura que, ao se fazer vítima de sua própria censura e preconceito, torna-se desprezível e violenta.

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Tudo começa quando um novato chega ao clube de nadadores e salva-vidas em que Len é membro e voluntário. Medalhista adorado pelos colegas, ele não demora até perceber o rosto fresco de Phil (Jack Matthews) e jogar sua imposição viril de “dono do campinho” para cima dele. Fascinado pelo namoro secreto que descobre ter o recém chegado, ao mesmo tempo em que se sente atraído pelo mesmo, Len começa a exibir um comportamento cada vez mais explosivo e destrutivo em relação aos outros e a si mesmo, enquanto seduz Phil e o condena paralelamente.

Porém, Drown não nos apresenta a história com toda essa facilidade proposta na sinopse, e parte de seu magnetismo reside na forma desconstruída em como apresenta os elementos a partir de um ponto específico – no caso, uma única noite de festas, bebidas e uma praia deserta. Momento do qual partem as linhas de raciocínio dos personagens, que reconstituem os últimos dias e horas que os trouxeram até ali sem se ater a uma linearidade. Se um personagem surge com o rosto machucado em uma cena, a causa só será conhecida muito depois, por exemplo.

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Investigar a trama a partir da lógica que ela nos é trazida pela torrente de sentimentos do protagonista faz da tarefa de assistir ao longa-metragem uma atividade prazerosa. Porém, o que a torna interessante de fato é analisar como, por uma vez, podemos ver uma figura tão condenada pelo próprio cinema que a abriga ser, enfim, destrinchada por um estudo de personagem mais calculado. O cinema gay tende, assim como qualquer outro movimento sob a bandeira do arco-íris, a incentivar que a repressão seja deixada para trás, que quanto mais liberdade se derem os indivíduos que se identificam com a causa, mais a própria terá tido sucesso. Logo, o homossexual que se reprime é quase sempre pintado como uma figura trágica, servindo para impulsionar ou ser a catarse de um personagem central. Drown, no entanto, enfoca Len como um ser vivaz, e palmas para Matt Levett que o assume com a energia necessária, além de uma articulação admirável ao transitar com naturalidade entre o alucinado e o reflexivo, entre o raivoso e o envergonhado, e entre o viril e o fragilizado.

Vivendo à sombra das conquistas do pai, Len associa a exigência constante de forma física com masculinidade, e logo, com dignidade, colocando-se em xeque repetidamente ao reencontrar seus sentimentos em relação a Phil batendo de frente com tudo aquilo que construiu na vida em reputação. Não por acaso, quando pela primeira vez o encontramos em seu real local de trabalho remunerado, não há surpresas em descobri-lo em um lixão, carregando à frente do corpo um pedaço enorme de grade, deixando claro o quão preso ele sente-se dentro de sua própria consciência, essa, uma grande sujeira prestes a transbordar da pior maneira possível. O que nos leva ao título, já que Drown (afogar), poderia se referir não somente ao ambiente que serve de palco para o filme, como também a como Len se afoga cada vez mais nos próprio desejos que insiste em vedar dentro de si, até que enfim, transbordem. E vê-lo dançar em uma atmosfera escura e iluminada por luzes neon remete diretamente ao fundo do oceano e seus seres bioluminescentes.

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Inteligente também ao desbravar uma relação de devires entre Len e seu amigo Meat (Harry Cook), o filme flerta com estudos modernos que não buscam impor títulos, mas definir sexualmente os indivíduos como menos ou mais próximos de extremos. Assim, Drown encerra-se em um clímax intenso que traz o protagonista encenando algo que vemos com maior ou menor nitidez acontecer todos os dias: o escape de sentimentos e afetos tão naturais depois de terem sido pressurizados ao limite pelos próprios portadores e convertidos pelas convenções sociais antes de serem expelidos em forma de agressão e violência. A solução fica implícita, já que seria óbvia: desligar o fogo que mantém essa mesma receita cozinhando há tanto tempo.

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é formado em Produção Audiovisual pela PUCRS, é crítico e comentarista de cinema - e eventualmente escritor, no blog “Classe de Cinema” (classedecinema.blogspot.com.br). Fascinado por História e consumidor voraz de literatura (incluindo HQ’s!), jornalismo, filmes, seriados e arte em geral.
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