Crítica

Na distopia vista em Drive-In da Morte, o carro é indispensável, não apenas como forma de locomoção, mas, principalmente, enquanto símbolo de status e, consequentemente, de poder. A atmosfera futurista delineada pelo diretor Brian Trenchard-Smith cheira a gasolina e tem barulho de motor. O protagonista, Crabs (Ned Manning), é tão franzino quanto o utilitário mequetrefe que ele dirige para sobreviver. Já seu irmão, o parrudo Frank (Ollie Hall), se coloca diariamente atrás do volante de um imponente caminhão-guincho, pois trabalha no concorrido mercado da remoção de automóveis acidentados, muitas vezes brigando por espaço em meio ao sangue que escorre dos corpos feridos ou mortos dentro deles. É um mundo de jovens, em que a arruaça fica por conta dos Cowboys, os bandidos que promovem toda sorte de delitos, mas também da polícia, que assume o papel de braço truculento de um Estado autoritário e completamente alheio aos problemas sociais, tais como o desemprego.

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Brian Trenchard-Smith habilmente alude a episódios do passado para construir esse amanhã decrépito. Os campos de concentração nazistas, por exemplo, ganham roupagem punk no drive-in em que Crabs e sua namorada, Carmen (Natalie McCurry), ficam presos após as rodas do veículo serem furtadas por aqueles a quem pretensamente se deveria confiar a segurança. O rapaz se recusa a acreditar que ficará permanentemente naquele local repleto de baderneiros, cujo comportamento é atribuído, nas entrelinhas, ao descaso da sociedade com as novas gerações. Aliás, Drive-In da Morte possui uma série de subtextos que se alternam como estofo do primeiro plano. A veracidade transmitida pelo marcante trabalho da direção de arte, que transforma o terreno no qual se passa boa parte do filme num entorno decadente, é imprescindível ao clima de desesperança. Carros pichados, focos de fogo, pilhas de lixo milimetricamente colocadas, são alguns dos indícios desse trabalho exímio.

Crabs parece ser o único que ainda tem esperança de escapar, ou ao menos vontade de. Há gente lá dentro que prefere o cárcere à liberdade, já que nesta não há garantias de comida ou do mínimo necessário para se viver com dignidade. Brian Trenchard-Smith encaixa com destreza as peças necessárias para que consigamos entender a situação extrema em que a Austrália se encontra em Drive-In da Morte. O fato do protagonista ser adepto dos exercícios físicos não é em nada gratuito, porque adiciona outro dado à sua evidente insubordinação, que será importante no transcorrer da trama. Numa realidade em que o carro deixa de ser mera extensão do corpo, tornando-se meio prioritário de interação possível entre a mente/alma e a esfera tangível, ele faz, assim, questão de reafirmar sua individualidade correndo à moda antiga. Essa inadequação fica ainda mais evidente na inquietude decorrente do isolamento sem perspectivas, situação cômoda aos demais.

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O drive-in é um microcosmo que abriga figuras das mais diversas e, muitas vezes, perversas, um ambiente em que a sobrevivência praticamente depende da capacidade de resignação. O diretor Brian Trenchard-Smith faz um filme ágil, dado a possíveis reflexões, além de bastante inventivo, visual e sonoramente. A hostilidade vista na chegada dos asiáticos “desovados” no acampamento, e também nas ameaças pontuais a um indiano que só queria usar o banheiro, deflagra a intolerância enraizada, elemento encarregado de denunciar a contaminação da nova geração com velhos preconceitos. Na contramão de sua namorada, que se acostuma com o lugar e assume não existir muito a ser almejado fora das cercas eletrificadas, Crabs se investe de coragem para nunca desacreditar na possibilidade de ver-se novamente livre. A tenacidade dele mostra que nem todos ali estão alienados, que enquanto um ousar se rebelar nem tudo está perdido, mensagem reafirmada no fim desta excelente realização australiana.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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