Crítica

Desde o início do ano, quando vazaram na internet as primeiras imagens de Do Começo ao Fim, o novo filme do diretor Aluizio Abranches, tudo indicava que este seria um dos longas nacionais mais comentados deste ano. Agora, após sua estreia, a impressão não só é correta como também satisfatória. A drama do relacionamento incestuoso entre dois meio-irmãos tem potencial para diversas discussões, mas deliberadamente toma o caminho mais simples e, justamente por isso, surpreendente, evitando polêmicas gratuitas e centrando seu discurso naquilo que realmente interessa: o amor.

Do Começo ao Fim é uma fábula de ficção, e como tal deve ser entendida. Não há falsa correção política ou pré-conceitos envolvidos em seu enredo. Por outro lado, há muita sinceridade, entrega e paixão. O filme mostra como uma família plenamente feliz pode, mesmo diante das situações mais adversas, se manter unida na busca de uma realização tanto em grupo quanto individual. Certas situações, atitudes e desejos podem parecer estranhos, confusos ou até mesmo errados, mas serão mesmo tão horríveis, uma vez que só produzem felicidade, sem que mal algum participe desta equação? Até que ponto devemos nos preocupar mais com o que os outros irão pensar ao invés do que aquilo a que o nosso coração aspira? Quando o bem se une com o bem, não deveria nunca a imagem do erro se associar.

Na primeira cena somos confrontados com um texto sobre livre arbítrio. O que é dito neste momento não é gratuito. Afinal, é sobre esta possibilidade que o filme se debruça. Podemos realmente escolher o que queremos para nós mesmos? Somos livres a este ponto? Muitos poderão julgar que Do Começo ao Fim não é verossímil, que seu desenvolvimento segue por meios utópicos, que faltam conflitos no seu desenvolvimento, que não há crise ou embates. A história avança, mas até que ponto esta evolução significa um crescimento, uma mudança? Se alguns, tomados por um moralismo precipitado, possam optar por avaliar este longa negativamente, apontando lapsos facilmente identificáveis como deslizes dentro de uma proposta tradicional, outros farão um esforço maior, indo além do óbvio. Estes serão recompensados na medida em que farão uso da reflexão para perceber que, na verdade, o que se quer colocar em evidência não é um simples caso gay, ou mexer com o tabu da atração sexual entre irmãos. Oferece-se mais, mostrando que, na verdade, o que importa é o sentimento. E não de onde ele vem ou como se realiza.

Uma mulher se casa, tem um filho, e alguns anos depois, se separa. Mais um tempo passa, outro casamento acontece, e uma nova criança ganha vida. Os dois são irmãos por parte de mãe, mas os laços que os unem são muito maiores e mais fortes do que esta ligação possa sugerir. São almas que se encontram, decididas a não mais se separarem. Uma só possui força ao lado da outra. Tristezas, decepções e tragédias acontecem em suas trajetórias, mas o ombro de um sempre esteve para apoiar o outro. Até o momento em que as responsabilidades da maturidade ameaçam acabar com isso. Ambos ficam fracos, perdidos. Mas sabem que o caminho para a salvação está na acolhida mútua que só eles podem oferecer.

Há sexo, há nudez, há beijo. Há diversos elementos que podem incomodar e até mesmo afastar os mais conservadores. Mas não há gratuidade em nada disso. Tudo possui um sentido muito claro, e Abranches, enquanto diretor e roteirista, tem pleno domínio de sua criação. A trilha sonora de André Abujamra (que já demonstrara um talento impressionante em trabalhos tão diversos quanto O Contador de Histórias e Encarnação do Demônio) só colabora na emoção crescente que nos envolve de forma intensa e absoluta. Outro ponto forte é o elenco coeso, desde atores profissionais como Júlia Lemmertz (parceira habitual do realizador, presente também em Um Copo de Cólera e As Três Marias, os dois filmes anteriores dele), Fábio Assunção (Primo Basílio), Louise Cardoso (Tempos de Paz) e o argentino Jean Pierre Noher (Estômago) até os novatos que aparecem como protagonistas: João Gabriel Vasconcellos e Rafael Cardoso (quando adultos) e Lucas Cotrim e Gabriel Kaufmann (na infância). As duas duplas possuem uma química perfeita, um entrosamento que é crucial para o sucesso desta empreitada.

Homossexualidade e incesto são dois temas que, separadamente, são capazes de provocar as mais diversas discussões. Juntos, então, são ainda mais explosivos. Do Começo ao Fim, no entanto, não se permite perder tempo questionando o sexo dos anjos. Pode parecer um pouco presunçoso, porém os resultados obtidos comprovam seu lirismo e uma delicadeza ímpar. A vez não é da prosa, da lógica, do comum. O espaço aberto cabe à poesia, e ela sabe fazer bom uso dessa oportunidade. E feliz também é aquele que consegue levar consigo um pouco dessa luz.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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