Crítica
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Sinopse
Em Corpo da Paz, ambientado no sertão paraibano em plena ditadura civil-militar dos anos 1960. O garoto Teobaldo enfrenta o embate entre desejo e repressão no momento em que chega um enigmático pesquisador americano ao Centro de Pesquisas do Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS). Drama.
Crítica
O cinema enquanto acerto de contas com o passado para que se possibilite uma adequação ao presente e a construção de um futuro mais forte. Por vezes, é preciso olhar para trás não apenas por meio de um escrutínio de ações, mas também sem exagerar na nostalgia e na emolduração de eventos que, por sua vez, talvez nem tenha sido tão importantes como a memória se encarrega de desenhar posteriormente, enganando não apenas os envolvidos, mas também os que buscam nesse relato um exemplo a seguir. A expressão tem seus próprios significados, e estes podem estar relacionados, mas também se revelar opostos, dependendo apenas do ponto de vista e da posição do espectador. Em Corpo da Paz, o diretor Torquato Joel parte de experiências autobiográficas para falar tanto do Brasil como de si, em um entrecruzamento de ideias e lembranças que, ainda que nem sempre bem-sucedido em sua proposta, ao menos não deixa de tentar. As ambições que revela, e estas não são poucas, estão tanto no campo estético, como no plano narrativo. Por essa provocação, o filme encontra sua valia, comprovando-se além de um mero discurso que busque atender apenas motivações imediatas, ampliando tanto o dito, quanto o efeito.
Teobaldo é não mais do que uma criança, mas as preocupações que o rodeiam são suficientes para lhe gerar apreensão. A ação se passa no sertão paraibano durante a segunda metade dos anos 1960, quando a ditadura militar avançava sobre o país com violência e desrespeito a qualquer voz contrária aos seus atos e vieses. A manipulação do povo era absoluta. Era tempo de “Brasil, Ame-o ou Deixe-o”, quando qualquer um que ousasse pensar diferente era logo taxado de comunista, anarquista ou baderneiro. Os pais do garoto podem pensar de um jeito, o patriarca revoltado com o rumo das coisas, a dona de casa temerosa com as posturas dos seus garotos. Mas o irmão mais velho não consegue ignorar a verdade do que se passa ao seu redor. Diferente do caçula, preocupado em aprontar com os amigos, em descobrir a si mesmo ou em apenas se deitar num galho de árvore e pensar na vida. Como se os poucos anos que acumulou nessa breve existência já lhe fossem bastante. Ao mesmo tempo em que o pai se emociona com a visita de um ‘gringo’ e a mãe passa mais tempo do que o devido relatando supostos pecados ao padre recém-chegado, o menino olha para o céu como se perguntasse até onde esse alcança. O mundo no tamanho de um sonho.

O comentário tem relação direta com o que acontece no Brasil de hoje. Temia-se por uma ameaça invisível, que talvez nunca se concretizasse, mas que naqueles que não tinham mais no que acreditar soava bastante verossímil. “Nosso país jamais será vermelho”, diziam antes, e repetem agora. Enquanto isso, o norte-americano chega cheio de sorrisos e gentilezas, ao mesmo tempo em que esconde suas reais intenções. Parece interessado nas plantações de algodão, mas quer saber mesmo é das pedras preciosas que podem ser encontradas pela região. Os que se imaginam nesse frágil poder, fecham os olhos a qualquer coisa ou atitude que poderia ter soado estranha, embevecidos por um falso agrado que mais retira do que acrescenta. Enquanto isso, os que insistem em se manter atentos apanham, se refugiam, se veem sem ter para onde correr. Teobaldo está no centro disso tudo. Em meio a uma brincadeira de criança, se mostra capaz de proporcionar uma vingança até mesmo àqueles que da necessidade dela nem mesmo suspeitam. O escrever certo por linhas tortas, uma vez que é sabido que coincidências não se sustentam.
Tanto coletivo quanto indivíduo, Corpo da Paz está expresso na jornada dessa criança, mas também no observar a si mesmo que o protagonista começa a investigar, vendo em seus limites questionamentos que até então sequer imaginava existirem. Torquato Joel embala esse conto de ontem para o amanhã por meio de uma fotografia em preto e branco preocupada com uma beleza estética avassaladora, o que é tanto um acerto, quanto um problema a ser superado. Pois, por vezes, o olhar de quem assiste se perceberá tão envolto diante o que está sendo exposto que encontrará resistência, para não dizer dificuldade, em abandonar essa primeira impressão e se permitir mergulhar num proveito mais denso e relevante. Ressente-se, portanto, de um maior equilíbrio entre forma e conteúdo. As elipses que abundam no decorrer dos acontecimentos aproximam o espectador, que se vê forçado a preenchê-las por meio de suas experiências pessoais. Por outro lado, há esse distanciamento apreciativo. Entre idas e vindas, eis um filme que se esforça em se mostrar sólido por si só, independente da temática ou dos resultados alcançados. Sua inquietude, portanto, é o maior dos acertos que apresenta.
Filme visto durante o 58º Festival de Brasília, em setembro de 2025
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