Crítica

O funcionamento diário da casa de Dona Pilar (Elide Brero) é feito de pequenas rotinas, das quais tomamos conhecimento no início do peruano Casadentro. Prestes a completar 81 anos, ela recebe ajuda das empregadas Consuelo (Delfina Paredes) e Milagros (Stephanie Orúe), sendo a primeira uma espécie de chefe da segunda, hierarquia estabelecida pelo tempo de serviços prestados. A mais velha se ocupa basicamente de fazer as coisas funcionarem conforme o gosto da patroa, já a jovem procura contatos exteriores sempre que possível, sobretudo por meio das mensagens de celular e dos telefonemas que faz para combinar os programas das folgas. A câmera se atém a esses rituais, às caminhadas lentas de Dona Pilar, à Consuelo chamando constantemente a atenção da dispersa Milagros, aos afagos e cuidados que a cadela Tuna recebe de todas. Nada de muito relevante parece acontecer.

O ritmo é bastante lento. A cineasta Joanna Lombardi Pollarolo captura, assim, a atmosfera de uma propriedade alicerçada no passado. Tudo muda a partir do telefonema de Patrícia (Grapa Paola), filha de Dona Pilar, que anuncia visita para logo. De pronto a casa começa a se mover, quartos são preparados e as empregadas se põem a reabastecer a dispensa, tudo para receber o restante da família que vem comemorar o aniversário da matriarca. As presenças de Patrícia, de sua filha com o marido e da bisneta provocam, pouco a pouco, um incômodo evidente nos silêncios constrangedores que conotam questões mal resolvidas. Não acessamos claramente o que já passou, mas percebemos que de lá advém marcas irreversíveis e inexpugnáveis. Casadentro se passa numa atualidade subserviente e oprimida pelo ontem.

Dona Pilar se mostra prestativa, porém afetivamente distante. Patrícia, por sua vez, deixa escapar no olhar melancólico o ciúme pela atenção que a mãe dá ao animal e que, provavelmente, deixou de oferecer a ela. A neta é obsessiva com os volumes baixos, pois acredita que qualquer som mais alto pode acordar sua filha bebê. Essas mulheres entram num choque velado, sem estardalhaços ou momentos catárticos. Em Casadentro as coisas são como são e as feridas não aspiram cicatrização, pois conformadas na impossibilidade. O clima vai se adensando em virtude da convivência forçada pelo sangue em comum. A insubordinação às convenções sociais que mandam os filhos gostarem dos pais, e vice-versa, aparece ruidosamente em cada não dito que amplia o abismo existente entre os consanguíneos.

É preciso paciência com o vagar de Casadentro. Não há espaço para calorosos acertos de conta, itinerário típico de histórias que giram em torno de dramas familiares. Aqui a resignação é uma convidada indesejada, porém constante, na mesa de Dona Pilar, senhora que prefere seus dias cuidando da cadela Tuna a demonstrar carinho pela filha ou mesmo pela bisneta recém-nascida. As empregadas não são apenas testemunhas desses relacionamentos truncados. Consuelo pode ser entendida como versão mais velha de Milagros, uma mulher triturada pelo tempo e suas decorrências. A lealdade à Dona Pilar talvez seja a única coisa que lhe resta. Conjecturas possíveis graças à porosidade da trama, às lacunas que podemos tentar preencher a convite de uma narrativa lenta (às vezes em demasia), porém rica de pormenores e suas respectivas significâncias.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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