
Sinopse
Em Ariel, após uma estranha viagem de barco, Augustina chega em uma estranha ilha nos Açores. Lá, todos interpretam (ou são?) personagens de Shakespeare. Augustina, que foi para a ilha participar de uma encenação de A Tempestade, percebe-se envolvida em uma adaptação do dramaturgo inglês na vida real. Drama/Fantasia.
Crítica
Um dos ditados mais difundidos – e mais verdadeiros – é o que afirma que, nessa vida, “nada se cria e tudo se copia”. Qualquer escola de roteiro cinematográfico irá atestar essa realidade, ainda mais no que se diz respeito ao desenvolvimento de histórias para o consumo de entretenimento. A ficção, portanto, aquela inventada para o cinema, o teatro, até mesmo literatura. É cada vez mais raro ao consumidor desse tipo de produto se deparar com obras capazes de se mostrarem originais do início ao fim, sem se encaixar num ou noutro conceito já compartilhado. Há quem vá mais longe e afirme que todas as tramas já foram utilizadas, e a melhor maneira de delas se apropriar seria por meio de um mergulho nas criações de William Shakespeare. Teria o bardo inglês reunido em suas peças e escritos todos os principais arquétipos narrativos, deixando aos demais apenas a contínua repetição destas estruturas? Há quem concorde, na mesma medida dos que dessa visão se distanciam. O galego Lois Patiño, no entanto, foi ainda mais radical. E o que propõe com Ariel é não apenas o uso, mas a derrubada de barreiras entre o real e a fantasia. Aqui, tudo é Shakespeare. E assim como o personagem que se dá conta da realidade da qual não consegue escapar, também o espectador se perceberá preso a uma fórmula intrigante, ainda que não desprovida de amarras.
Agus (Agustina Muñoz, que já havia trabalhado com o cineasta no curta Sycorax, 2021, projeto embrionário que deu origem a esse Ariel) é uma atriz contratada por uma trupe teatral para um trabalho de algumas semanas na ilha dos Açores, em meio ao oceano Atlântico (região de Portugal). Sua expectativa é alta. Imagina estar entre profissionais tarimbados, de larga experiência, e que tal oportunidade irá lhe prover não apenas de momentos de aprendizado, mas também de crescimento pessoal. Não cogitava, porém, que o proposto se mostraria tão distante das práticas mais convencionais com as quais estava até então habituada. Pois ao chegar no seu destino, o que percebe é não mais se ver entre pessoas como ela. Ali existem apenas personagens. E não quaisquer um. São figuras retiradas das peças assinadas por Shakespeare. Descobrir como se portar diante deste cenário pode ser tão transgressivo, quanto perturbador. Pois não se aceita de imediato a veracidade do fato. Pensa-se estar envolta por uma bruma, uma piada estendida além da conta. Mas não adianta se rebelar. O que é não tem jeito. Ou se aceita, ou a distopia se prolonga.
Os corredores de um supermercado podem ser palco para Macbeth. As intrigas que rodeiam Hamlet se passam entre árvores do bosque local, assim como a recepção do hotel pode dar espaço a gracejos de Muito Barulho por Nada. Os amantes de Romeu & Julieta não temem o final trágico que os espera, pois há apenas uma verdade para eles: é preciso que o desfecho seja alcançado até o final do dia, uma vez que no dia seguinte o livro será mais uma vez aberto, e tudo o que podem esperar é por um novo recomeçar. E assim por diante, dia após dia. Agus não tem esse nome por acaso: a angústia lhe toma conta, e parece ser a única ciente do absurdo que por ali se aflige. Ou seria o contrário? Não faltaria a ela a mesma imersão já percorrida pelos demais? Conseguirá se lembrar no amanhecer seguinte de onde veio e para onde precisa voltar, ou abrirá mão de tudo em nome de levar sua composição de Ariel, aquela de A Tempestade, até as últimas consequências?
Mas já há uma Ariel no vilarejo, e essa não parece disposta a abrir mão do seu posto. Ou tudo o que precisa é acordar para o que já foi – e, portanto, poderá voltar a ser? O entremeio é lírico, mas também inquieto. E quando um solitário caminhante cansado de tanto esperar – “ele veio da ilha vizinha, aquela criada por Becket” – cruza seu caminho, as possibilidades de que esse não seja um pesadelo particular se multiplicam. São todos, portanto, personagens em busca de um autor, tal qual Pirandello os imaginou. Em meio a tantos cruzamentos, até mesmo Patiño se mostra disposto ao debate. É ele quem determina o conceito perseguido em cena, por meio de sua presença nos bastidores, ou é também refém de uma lógica por demais perversa? Ariel questiona céu e inferno em meio a uma aparentemente inofensiva brincadeira entre criadores e criaturas. Mas as sombras que lança são densas, e mais profundas, do que uma reação inicial poderia antever. Um filme disposto a quebrar as paredes – e não apenas a quarta – em busca por uma resposta que não apenas se revela árdua, mas que simplesmente inexiste. E essa é sua maior beleza.
Filme visto durante o 14º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, em junho de 2025


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