Aqui Não Entra Luz

Crítica


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Sinopse

Em Aqui Não Entra Luz, entre memórias pessoais e pesquisas históricas, uma cineasta, filha de uma trabalhadora doméstica, percorre o Brasil procurando rastros da escravidão na arquitetura. No caminho, encontra outras mulheres que enfrentam o mesmo legado. Documentário.

Crítica

Karol Maia tinha um acerto de contas para resolver. E não era a respeito de uma desavença do passado, um problema que foi sendo empurrado para debaixo do tapete ou qualquer outro tipo de situação incontornável que no começo parece irrelevante, mas que aos poucos vai ganhando outro tipo de dimensão. O drama dela vinha de mais tempo, desde a infância, e tinha a ver com sua própria genitora. Mãe e filha precisavam conversar, se acertar, esclarecer noções nebulosas e alinhar visões de mundo. E isso não é algo que o espectador irá supor a partir do que vê em cena durante Aqui Não Entra Luz. Raciocínios lógicos não se fazem necessários, pois a verdade é que tal intenção é enunciada de forma clara pela cineasta, eliminando qualquer dúvida. Porém, há uma dificuldade que ela, aparentemente, não esperava. A matriarca se recusou a conversar diante das câmeras. E assim, sem conseguir convencê-la de partida, um outro filme se fez necessário. O que se vê, portanto, não é o planejado: é o que foi possível. E tanto a abertura, quanto o desfecho, reforçam essa conclusão. Quase que fruto de um improviso, mesmo que tenha levado anos para ser finalizado – característica não singular desse projeto, mas de quase todo longa brasileiro feito de forma independente. Algo que, por outro lado, não deve estar envolto em uma eventual avaliação. Observa-se o resultado, e não as intenções.

E o que pode ser dito sobre essa estreia de Karol Maia em um longa-metragem? Ainda que sua temática seja urgente, digna de atenção e meritória de um cuidado especial, não é nem particularmente original em sua abordagem, menos ainda fiel à proposta anunciada ao espectador. Num país de tantos abismos, analisar as diferenças socioeconômicas entre as empregadas domésticas e as famílias com as quais elas convivem em seus empregos, como também em relação aos demais profissionais da área de prestação de serviços, se faz necessário. Mas não chega a ser inédito. Afinal, o próprio cinema brasileiro tem se encarregado em explorar estas mazelas, seja na ficção, em projetos como Domésticas: O Filme (2001), de Fernando Meirelles e Nando Olival, ou Que Horas Ela Volta? (2015), de Anna Muylaert, como também no âmbito documental (Doméstica, 2012, de Gabriel Mascaro). Alguns apontarão que estes exemplos são verticais, de cima para baixo, pois partem de pessoas alheias a essa realidade em suas vidas cotidianas. Maia, por sua vez, tem uma aproximação horizontal, visto que sua mãe é uma prestadora desse tipo de serviço. Portanto, há de se imaginar que ela tenha mais propriedade para discorrer sobre o tema.

20250927 aqui nao entra luz papo de cinema

Com a negativa materna, a realizadora se aproximou de outras mulheres com histórias de vida similares – mas não idênticas. Há a que somente na maturidade foi entender quais eram seus reais direitos, a que foi abandonada pela mãe e explorada por outros familiares desde a infância, a que nunca aceitou levar desaforo para casa. As personagens escolhidas são interessantes e prendem a atenção da audiência em seus depoimentos. Mas ao término de cada um, permanece uma questão não esclarecida: o que cada uma destas mulheres possuem de especial, que as diferencie das tantas outras como elas? Servem como exemplo, claro. Mas não são únicas. Pelo contrário, representam um todo. O individual, portanto, permanece no âmbito familiar. Faz falta ter mãe e filha lado a lado. E é só no trecho final, quando elas finalmente se encontram, que o filme se completa. Ou, por outro ponto de vista, eis que, enfim, ele começa. É o que precisava ser dito. Tudo o que veio antes é não mais do que um prólogo, vital enquanto contexto, mas não inerente ao debate prestes a ter início. E eis uma distorção difícil de ser ignorada.

Aqui Não Entra Luz tem como base de sua discussão essas mulheres que muitas vezes são apresentadas como se fosse “quase da família”, mas na maioria das ocasiões não são respeitadas em suas individualidades. O título, obviamente, é uma referência ao quartinho dos fundos, também conhecido como “dependência da empregada”, um cubículo minúsculo que, invariavelmente, nem janela possui. Pois bem, que se faça refletir a respeito desse absurdo. Mas Karol Maia precisa se acertar com a mãe. E essa, vejam só, não faz parte da realidade apontada – ou, ao menos, tal viés não chega a ser explorado pela conversa entre elas. A filha se sentia constrangida quando a mãe, uma limpadora, precisava recolher o lixo ou varrer a sala do escritório onde a menina havia conquistado seu primeiro estágio. Há um embate psicológico entre elas. Uma depende dessa realidade, mas não a aceita. Já a outra, por mais contrariada que possa ter se visto em algum momento de sua vida, aceitou o desafio e o defende por tudo que já conquistou por meio dele. Portanto, o que se tem é menos um estudo sobre a condição dessas profissionais – abordagem que ocupa a maior parte da narrativa – e mais um alinhamento familiar e geracional – que termina relegado apenas ao trecho final do conjunto. Sobra boa vontade, mas falta mudança de fato. Tem-se algo pensado num formato, mas entregue como algo diverso. E sem alcançar nem um, menos ainda outro, frustra-se expectativas, por mais que essas se mostrem dispersas por meio de um discurso válido, mas que pouco consegue ir além das intenções, tanto familiares, como sociais.

Filme visto durante o 58º Festival de Brasília, em setembro de 2025

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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