Anatomia de uma Queda

16 ANOS 142 minutos
Direção:
Título original: Anatomie d'une chute
Gênero: Drama, Policial, Suspense
Ano: 0823
País de origem: França

Crítica

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Sinopse

Sandra vive com seu marido, Samuel, e o filho de ambos numa pequena e isolada cidade dos Alpes. Quando Samuel é encontrado morto, ela se torna a principal suspeita e o seu julgamento traz à tona mais dúvidas do que certezas.

Crítica

Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes deste ano, Anatomia de Uma Queda é, na superfície, um filme de investigação criminal. Nele, Samuel (Samuel Theis) cai de uma altura fatal de sua casa nos Alpes franceses e as suspeitas recaem sobre a sua esposa, a escritora Sandra (Sandra Hüller). Um pouco antes, ela dava entrevista a uma aluna, mas essa dinâmica precisou ser interrompida por conta da execução de uma versão instrumental da canção “P.I.M.P.” num volume ensurdecedor por quem estava prestes a morrer. Como os primeiros laudos apontam à possibilidade de um golpe na cabeça antecedendo a queda, Sandra é encarada como possível homicida. No entanto, num nível mais profundo, o longa-metragem dirigido por Justine Triet fala sobre a relatividade das imagens e a fragilidade da verdade. Samuel aparece objetivamente em cena apenas como um cadáver, antes disso surgindo extracampo (fora do quadro) por meio da sonoridade que preenche a casa incomodando a esposa, a visitante e o filho do casal, Daniel (Milo Machado Graner) – menino praticamente cego que conta com o auxilio de seu cão para se orientar. Mais à frente, quando a trama é deslocada ao tribunal, Samuel aparece em dois momentos ilustrativos: o da gravação sonora de uma briga e o do relato do filho a respeito da fala fundamental ao veredito. Triet faz de Samuel o símbolo da falta de objetividade das imagens, de como a percepção sobre o fato muda de acordo com as estratégias do interlocutor.

As imagens têm um poder enorme. Tidas como comprovações inequívocas, elas também podem ser enganosas. No cinema, por exemplo, o flashback tende a ser encarado como verdade, pois é a reprodução do passado por meio daquilo que se testemunha visualmente. Mas, esses recuos temporais podem ser falsos, representações de mentiras contadas de A para B. Desse modo, quem garante que essas duas versões de Samuel em flashbacks não são bem menos fidedignas do que parecem? E nesse sentido de remontar ao passado em imagens, as palavras também são importantes. Na reconstituição que a diretora faz da briga entre Samuel e Sandra, a única coisa gravada é o áudio. Já a cena à qual assistimos é uma tentativa de enxertar corpos e expressões ao som. Prova de que as palavras são fundamentais é o fato de o flashback simplesmente ser interrompido assim que o verbo cessa e dá lugar a copos quebrados e a agressões físicas mútuas. Mais à frente, quando o menino relata a tal conversa com Samuel, em que ele supostamente teria falado metaforicamente de suicídio, Justine nos dá uma pista valiosa e ainda mais evidente dessa volatilidade da verdade. A imagem “dubla” perfeitamente a fala do menino, ou seja, perde o seu caráter de certeza e assume escancaradamente a sua natureza relativa. Assim, Anatomia de uma Queda utiliza a tragédia para discutir como as crenças vencem as convicções, haja vista os acenos moralistas da promotoria. O acusador expõe a intimidade de Sandra para minar a sua reputação, moldando a percepção alheia (ao atiçar os preconceitos do júri) visando uma predisposição.

Sandra Hüller, em performance brilhante, faz de Sandra um poço fascinante de incertezas. Os indícios da perícia praticamente descartam a morte acidental de Samuel, criando assim o cenário propício para jurados e espectadores duvidarem das falas dela. Some-se a isso o fato de a escritora ter dito que a literatura era um modo de apagar os rastros da realidade, uma maneira poética de transformar a aspereza do cotidiano em material artístico, e nela serem encontradas simetrias com o caso. Isso nos impõe ainda mais dúvidas. Geralmente, num filme de tribunal – Anatomia de uma Queda se filia a essa tradição lá pelas tantas –, a busca é pela certeza entre a culpabilidade e a inocência. Nem sempre bandidos são pegos pelas garras da lei, mas ainda assim desmascarados ao público como sujeitos então impunes. Justine Triet não parece interessada nessa investigação como meio de atingir um juízo sobre o caso. Ela ambienta grande parte da trama no julgamento para enfatizar que todos (inclusive a justiça) estão à mercê do que acreditam ou do que são levados a admitir pela exposição das testemunhas, da acusada e dos advogados. Por conta disso, em último caso, a crença derrota a convicção. A primeira vem de um salto de fé, representa até mesmo o que desejamos adotar como fato; já a segunda advém da tentativa apaziguadora de chegar à certeza, tarefa hercúlea pela relatividade ditada pelas perspectivas. Triet defende a impossibilidade de chegar à verdade absoluta, pois todos estão “contaminados” por algo, do filho que anseia acreditar na mãe ao advogado em alguma medida orientado pela paixão reacendida.

Anatomia de uma Queda carrega o fardo de ter vencido um dos mais prestigiados prêmios do cinema europeu, para muitos considerado o Santo Graal do chamado “cinema de arte”. Talvez por isso enfrente um desafio proporcional à sua enorme conquista: encarar espectadores que se colocam diante dele com uma atitude prepotente do tipo “me convença de que você mereceu”. À plateia em busca de um indício de magnitude a cada minuto, uma dica: se desarme e preste atenção naquilo que a trama comunica nas entrelinhas, no que deixa subentendido com exímia perícia. No fim das contas, pouco importa se Sandra será absolvida ou condenada, pois o resultado é ditado pelas mise en scènes e pela consistência dos convencimentos que podem demolir tanto as convicções quanto as provas supostamente cabais (como as imagens, os padrões de respingo de sangue, a lógica, etc.). Diferentemente do que o maneirista Paul Verhoeven fez em Instinto Selvagem (1992), com a escritora transpondo o real à literatura para eternizar as lembranças de seus crimes, Justine Triet utiliza essa tensão entre ficção e realidade para tornar ainda mais profunda e densa a discussão estimulante sobre verdades e mentiras. Enredados nesse jogo de gato e rato, submetidos a diversas versões e indícios que se alternam como provas “irrefutáveis”, somos fisgados pela convenção da investigação criminal, depois pela envolvente batalha no tribunal, mas o filme fala da fragilidade do próprio conceito de verdade.
Filme visto durante a 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (2023)

Marcelo Müller

Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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