Crítica

A personagem de uma ‘casamenteira’ só poderia existir em tempos mais inocentes – hoje em dia, acredita-se, uma ‘profissão’ tão sem sentido quanto essa nem encontraria ressonância junto ao público. No entanto, funcionou exatamente de acordo com as mais positivas expectativas no musical Alô, Dolly!, veículo feito sob encomenda para aumentar o tempo de exposição sob os holofotes de Barbra Streisand, que no final dos anos 1960 era, provavelmente, a maior estrela de Hollywood. Logo após ter ganho o Oscar de Melhor Atriz justamente por seu trabalho de estreia – Funny Girl: A Garota Genial (1968) – ela tomou a decisão mais acertada e embarcou no gênero que lhe era mais familiar – afinal, antes de qualquer coisa, ela é uma grande cantora – e conseguiu outro sucesso, recebendo indicações ao Globo de Ouro e ao Bafta por um papel, até certo ponto, inesperado.

Dolly, afinal, não é a mais convencional das protagonistas. Ela, aliás, nem mesmo é a mocinha do filme. No auge dos seus 25 anos (idade da intérprete durante as filmagens), era considerada ‘velha’ para seguir sonhando com um príncipe encantado, e isso, somado ao fato de não ser de uma ‘boa família’, dona de posses, lhe obrigou a tomar caminhos ‘alternativos’, se podemos dizer. Como resultado, temos essa personagem que vive de jogos e dissimulações, sempre visando um bem maior que compense seus esforços não só aos olhos dos outros, mas principalmente no que diz respeito ao próprio bolso. E sua última jogada é encontrar a esposa ideal para o Sr. Horace Vandergelder (Walter Matthau), um empresário do interior que vai a Nova York apenas para resolver essa ‘questão’: afinal, já perto da meia-idade, não pegava bem perante à sociedade, permanecer solteiro. Por isso vai atrás da ajuda ‘profissional’ de quem entende do assunto, buscando uma solução rápida para seu caso que lhe permita voltar logo para casa e seguir tocando seus negócios. O que nenhum dos dois esperava, é claro, é que o amor verdadeiro se intrometesse em seus caminhos.

Baseado na peça The Matchmaker, de Thornton Wilder, que por sua vez inspirou a versão teatral de Michael Stewart, Alô, Dolly! foi um grande sucesso da Broadway, tendo estreado em 1964 e ganho no ano seguinte 10 Tonys – o Oscar do teatro norte-americano – inclusive o de Melhor Musical. Esse resultado quebrou um recorde de 35 anos que repercute até hoje – para se ter uma ideia, a única lembrança do século XX que o robozinho Wall-E, da animação homônima de 2008, mantém em sua pequena televisão são os números embalados pelas canções Put On Your Sunday Clothes e It Only Takes a Moment, ambas do filme. Essa versão cinematográfica, aliás, também teve seu impacto, recebendo nada menos do que sete indicações ao Oscar – inclusive a Melhor Filme – e ganhando três estatuetas: Melhor Trilha Sonora, Melhor Som e Melhor Direção de Arte.

Se os figurinos e cenários de Alô, Dolly! são, de fato, impressionantes, há tantas histórias absurdas sobre os bastidores da produção que são ainda mais interessantes do que o projeto como um todo. Pra começar, ficou notório a antipatia que os dois astros principais – Streisand e Matthau – nutriam um pelo outro, tanto que a cena clímax, quando os dois deveriam se beijar, foi filmada de tal modo que permitiu que ambos apenas encostassem o rosto um no outro, evitando um contato mais íntimo. Outro destaque das filmagens foi a participação mais que especial de Louis Armstrong, que esteve no set por apenas um dia e gravou de primeira a canção-tema Hello Dolly, que lhe valeu a posição número 1 da Billboard. E a popularidade do longa foi tanta que acabou ficando entre os cinco maiores sucessos de bilheteria do ano, um feito e tanto para uma época em que o gênero musical começava a demostrar seus primeiros sinais de baixa junto ao público.

Entre uma duração excessiva – são quase 150 minutos – e algumas subtramas que pouco contribuem para o centro da história – perde-se muito tempo com os romances paralelos dos empregados, por exemplo – Alô, Dolly! compensa qualquer deslize pela presença hipnotizante da diva Barbra Streisand, que desde jovem sabia como deixar sua marca fixa na tela. Com um sorriso contagiante, uma voz única e uma presença que ia além do convencional, ela convencia em cada detalhe, fazendo com que até o mais desatento da plateia acreditasse na atração improvável entre ela e o grande Walter Matthau – um dos casais mais deslocados da história do cinema. As músicas envolventes, o ritmo dinâmico e a direção segura de Gene Kelly – um mestre no assunto – fizeram dessa uma obra essencial, que até hoje possui um lugar especial no coração e na admiração de cinéfilos de todas as idades.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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