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Sinopse
Em A Própria Carne, três soldados desertores durante a Guerra do Paraguai, em 1870, precisam lutar pela sobrevivência. Durante a fuga encontram uma casa isolada na fronteira, habitada apenas por um fazendeiro misterioso e uma jovem. O que parecia ser um refúgio seguro se transforma em um pesadelo. Horror.
Crítica
Há uma falsa percepção entre o grande público de que o cinema brasileiro só é capaz de entregar comédias populares ou tramas baseadas em figuras conhecidas, como personagens históricos, artistas pop ou celebridades em geral. Felizmente, há realizadores dispostos a confrontar esse senso comum. E Ian Sbf tem se mostrado alinhado com essa perspectiva. Por mais que tenha dado início a sua carreira atrelado a um grupo cômico – é dele o frustrante Porta dos Fundos: Contrato Vitalício (2016) –aos poucos foi ampliando o seu espectro de atuação enquanto realizador. Entre Abelhas (2015), lançado um ano antes, pode hoje ser visto como um embrião dessa vontade de ir além do que dele se poderia esperar. O curta Arzok (2019) e a ficção científica que quase ninguém viu Ciclo (2022) foram passos seguintes nesse sentido. A Própria Carne surge para confirmar esse cenário mais diverso e ousado. Não só pelo que apresenta em cena, como também por sua origem nos bastidores. Trata-se, afinal, de um projeto singular no mercado audiovisual brasileiro, surgido por iniciativa de um canal digital e distribuído em parceria com uma única rede de cinemas. Parece deixar exposto um interesse em estabelecer contato com apenas um nicho específico. Mas poderia ser diferente? Apenas escancara aquilo que já se daria, de uma forma ou outra, e com um alcance ainda mais reduzido. Da forma que prosseguiu, por sua vez, gerou curiosidade e proporcionou debate. Novamente, tanto pelo que alcançou nos bastidores, como também pelo resultado visto na tela.
A Própria Carne é um filme de terror, e não tenta driblar essa verdade. Mas não se mostra disposto a se encaixar nesse perfil por conexões óbvias, e sim por uma consequência natural a respeito do enredo que desenrola entre seus personagens. Estes são três soldados desertores da Guerra do Paraguai, um episódio ainda nebuloso do passado nacional. Todo mundo já ouviu falar do evento, mas quem sabe ao certo o que de fato aconteceu, seus motivos e consequências? Ian Sbf e os roteiristas estreantes Deive Pazos e Alexandre Ottoni (a dupla por trás do perfil Jovem Nerd) também não estão preocupados em oferecer tais respostas, o que é um ótimo sinal. Tentar abraçar o mundo com as pernas nunca é o melhor caminho. Pelo contrário, eles apenas partem dessa noção difusa a respeito do conflito para darem origem a um conto à parte, específico e desenvolvido de acordo com suas regras. Eis um filme que não tem pressa de dizer a que veio, até mesmo porque sabe ter sua audiência cativa e disposta a aguardar até o momento preciso em que tais revelações deverão se impor. O que se tem é um Brasil distante, perdido entre matas e neblinas, no qual este trio de fugitivos – sim, pois se fossem pegos pelos ex-colegas, a pena seria a morte imediata – tenta salvar o pescoço diante de perigos e desafios ainda maiores do que aqueles dos quais imaginavam terem escapado.

Gabriel (Pierre Baitelli, o selvagem), Anselmo (George Sauma, o covarde) e Gustavo (Jorge Guerreiro, o ponderado) não conseguem se manter afastados do conflito por muito tempo, e acabam sendo encurralados. Um enfrentamento se dá, e mais uma vez conseguem escapar, mas não sem prejuízo: um deles é atingido, e precisa de atendimento médico para não morrer. São estas as condições deles quando, no meio da noite, batem à porta da única casa que encontram pelas redondezas. Quem os atende é um fazendeiro cujo nome não chega a ser revelado. Com ele, está apenas uma garota, bem mais jovem, mas igualmente de poucas palavras. O homem os dará guarida, mas deixa claro que não será enganado pelos recém-chegados, caso esses demonstrem outras intenções além do repouso noturno. Tudo é muito estranho naquele ambiente, ao mesmo tempo em que tais incômodos são prontamente justificados por meio de argumentos bastante lógicos. O que está se passando, portanto? Seria apenas uma inadequação passageira? Qual lado está revelando mais do que afirma serem ser seus propósitos, os fugitivos ou aqueles que os receberam? E nesse embate, qual o papel da audiência? Não estaria essa guiando seu olhar e percepção por meio de preconceitos influenciados por percepções além daquilo que compõe o tecido narrativo? Nada parece ser tão simples, por mais que as explicações tão desejadas estejam todas bem à vista. Basta para encontrá-las saber o que procurar.
Se os três protagonistas se mostram comprometidos com seus personagens, se faz necessário apontar o impacto proporcionado pela atuação de Luiz Carlos Persy (O Outro Lado da Rua, 2004). Lidar com sua presença não se mostra uma tarefa fácil, pois por mais que esteja sempre pronto a lidar com qualquer questionamento, é sabido que algo permanece escondido em seu discurso. A dissimulação de suas vontades e intenções é trabalhada com prazer pelo ator, que hipnotiza pelo domínio completo de um personagem tão condenável quanto digno do sofrimento que causa – assim como por aquele que lhe é imposto. Joga contra A Própria Carne, porém, a ambição do diretor e daqueles responsáveis pela concepção da história em ir além do pouco que tão bem haviam administrado pela maior parte da narrativa. Nos minutos finais, o anseio por se mostrar acima do que havia sido exposto até então, apontando para desdobramentos que não se faziam relevantes, enfraquece o conjunto por invadir searas próximas ao absurdo e ao incongruente. Se a mudança de perspectiva oferece lógica às certas atitudes que se mostravam implausíveis, também extrapola a boa vontade do espectador que se mostrara fiel até aquele ponto nesse mergulho de dor e violência, mas compensador pela parcimônia – não há atropelos ou gritos por atenção – e elegância com quais elementos foram abordados. Menos é mais, e nesse caso, o excesso se dá justamente por ir além do que já havia se confirmado como bastante. Um pequeno tropeço após uma impressionante conquista.
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