Crítica

“O Artista Johan Borg desapareceu há alguns anos sem deixar vestígios, de sua casa na ilha de Baltrun, uma das Ilhas Frísias. Sua esposa Alma depois me deu o diário de Johan que ela encontrara entre os papéis dele. Esse diário e os relatos de Alma são a base deste filme”.

Esse é o texto que abre A Hora do Lobo, terror psicológico dirigido pelo sueco Ingmar Bergman em 1968, infelizmente a única incursão do grande realizador pelo gênero. O filme começa de maneira pouco comum: à mensagem acima descrita são adicionados os sons da movimentação de uma equipe de filmagem. Após o o comando “Ação”, vemos a casa de onde logo sai Alma Borg (Liv Ullmann), ela que nos convida de modo direto, como seus interlocutores, a acompanhar o relato da história com Johan Borg, seu atormentado marido (Max von Sydow). Assim, os limites entre ficção e “realidade” são borrados já na largada, e essa é apenas uma das boas surpresas narrativas do longa.

O pintor e sua temerosa esposa formam um casal que foi até a ilha buscar paz. Contudo, ali a tranquilidade quase inexiste. Em seu lugar, surgem momentos obscuros, repletos de elementos góticos, vampirescos, além de discórdia e inquietação.  O estilo de direção é refinado, faz uso de uma série de recursos narrativos para dar ao filme um caráter profundo e ao mesmo tempo simples. A cada nova sequência somos convidados a explorar os limites entre sonhos e medos, realidade e ficção, vida e morte, tudo transcorrido principalmente no inconsciente dos personagens. O pintor é quem mais se relaciona com os demais habitantes da ilha, estes um tanto exóticos. A interpretação de von Sydow faz desse homem um sujeito inquieto, cuja expressão é ao mesmo tempo atormentada e impassível. Por vezes, ele até manifesta sintomas de eventuais distúrbios e traumas.

Arrisco dizer que a atuação de von Sydow pode ter influenciado Jack Nicholson na concepção de seu personagem em O Iluminado (1980), assim como o trabalho de Bergman talvez tenha servido à Stanley Kubrick. É impossível ver A Hora do Lobo e não relacioná-lo à produção britânica.  Vejam: a chegada de um casal a um lugar solitário, o isolamento do marido e a sua relação com os estranhos habitantes do lugar, a mudança de atitude do homem, a incredulidade da esposa e a violência masculina motivada pela insanidade. Lógico que há diferenças, já que Bergman filmou com propósitos obviamente distintos. Seu cinema é mais intimista, reflexivo e mergulha em aspectos profundos da alma humana. Ele utiliza com muita competência sua experiência teatral para dirigir os atores, aqui especialmente Liv Ullmann, que possui uma expressão de medo e passividade perfeitas durante quase todo o filme.

Um elemento estético a se destacar é a apropriada fotografia em preto e branco de Sven Nykvist, colaborador de Bergman em outros tantos longas. Neste filme em especial ele evoca a estética expressionista alemã, com jogos de claro e escuro, extremo contraste e iluminações em primeiro plano, deixando os espaços mais afastados na penumbra ou na completa escuridão. A criação dá uma aura de pesadelo e indistinção entre o que é próprio de um personagem ou de outro, sintoniza o desenrolar da trama.

A Hora do Lobo nos apresenta um olhar perturbador sobre o abismo inerente ao próprio homem, oriundo da maldade que o cerca, misturando medos entre vontades e repulsas. No limite está a própria ideia da loucura, que pode ser discutida e deslocada ao longo da história. A trama nos convida a um tortuoso labirinto formado pelas memórias e alucinações de Johan e Alma, no limiar entre o “Eu” e o “Outro”. Bergman é reconhecido por dominar a linguagem cinematográfica de maneira peculiar. Nesta obra, ele usa a arte como caminho de entendimento e vivência, refletindo a respeito de seu sentido em meio a um universo onírico e denso. E caso você queira saber o que significa a tal “Hora do Lobo” fica a dica: ela acontece na madrugada, num momento específico com grande profusão de nascimentos, mortes e pesadelos. Partindo apenas disso, as possibilidades de leitura já são inúmeras. Veja o filme e tire as suas conclusões. Vale a pena.

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