Crítica

É difícil definir um filme como The Lure (ou A Atração, como foi batizado ao ser exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo 2016), primeiro longa da polonesa Agnieszka Smoczyńska. É, ao mesmo tempo, uma adaptação que leva A Pequena Sereia, de Hans Christian Andersen, para a Polônia da década de 1980, combinada a um musical colorido e vibrante, em uma história coming-of-age (focada no período de transição entre infância/adolescência e a vida adulta), um conto de terror e uma reimaginação moderna de suas criaturas mitológicas.

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O enredo conta a história de duas sereias, as irmãs Prata (Marta Mazurek) e Dourada (Michalina Olszańska), que encontram uma banda de rock numa praia e acompanham um dos músicos até uma casa noturna. Lá, elas passam a fazer performances sensuais que exploram a beleza das jovens e o exotismo de suas caudas de peixe. Fora d’água, as caudas se transformam em pernas; a doce Prata, porém, apaixonada pelo jovem humano Mietek (Jakub Gierszal), ainda sofre por não ser uma “garota real”.

Numa leitura surpreendentemente fiel ao caráter trágico da obra de Andersen – muito mais do que a adaptação mais famosa, a versão da Disney de 1989 – Smoczyńska cria um universo que flerta com o realismo mágico, mesclando confortavelmente a fantasia a um mundo real e verossímil. As sereias são seres indiscutivelmente mágicos, mas os humanos parecem aceitar a existência dessas criaturas com extrema naturalidade. Nos momentos em que a pequena sereia de Andersen recorreria a uma bruxa, por exemplo, Prata recorre a um cirurgião.

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Mais do que uma ferramenta que dá ao filme uma energia contagiosa, o fato de The Lure ser um musical se encaixa perfeitamente à mitologia que envolve a figura da sereia, já que o canto é uma de suas características mais marcantes no folclore. Além disso, a diretora expande o mito e dá a Prata e Dourada poderes novos, como o de metamorfose e telepatia, além de transformá-las também em criaturas vampirescas. Se normalmente a sereia atrai os homens para o mar – e a morte por afogamento – com seu belo canto, aqui as consequências de encantar-se por uma das irmãs são bem mais gráficas: as vítimas são brutalmente devoradas.

Como outras obras que trazem personagens femininas como seres igualmente ameaçadores e atraentes, neste filme há também um sutil viés feminista. As irmãs saem do mar e são imediatamente transformadas em objetos pelos donos da casa noturna onde trabalham: têm seus corpos expostos aos olhares masculinos e são constantemente sujeitas a comentários misóginos. A diretora, inclusive, compara suas próprias personagens a imigrantes que sofrem abusos quando chegam em um país estrangeiro. Dourada, a mais violenta das duas, serve como um contraponto à figura trágica, pura e disposta a se sacrificar por amor encarnada por Prata. Há um evidente esforço para inverter o sentido da conhecida narrativa da assassina que usa a sexualidade para atrair suas vítimas. Aqui elas são colocadas não como antagonistas, mas como as heroínas da trama.

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É uma pena, entretanto, que o filme não dê ao enredo a mesma atenção que dá aos aspectos visuais, como a fantástica fotografia e os belos efeitos especiais. O roteiro parece ter sido escrito por alguém que sofre de hiperatividade, incapaz de decidir qual linha narrativa seguir, dando voltas e fazendo com que os personagens tomem decisões inexplicáveis e confundindo até o espectador mais atento. Ainda assim, The Lure é uma obra singular, para o bem ou para o mal. Smoczyńska combina um tom de conto de fadas à estética da Polônia oitentista, criando uma atmosfera fantástica e convidativa que envolve o público como o canto das sereias.

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cursa Jornalismo na Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo e é editora do blog Cine Brasil.
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