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Do lado de fora, o tempo fechado não empolgava ninguém. Mas bastava cruzar o portão da Fábrica 3777, em Porto Alegre, para sentir outra vibração: cores, figurinos e música tomavam conta do espaço. Era dia de gravação de Coligay, filme (que também será adaptado em série) que resgata a história da primeira torcida 100% gay do futebol brasileiro.

O Papo de Cinema foi convidado, no final de outubro, pelos responsáveis pela produção – Ventre Studio, Casa de Cinema de Porto Alegre, Canal Brasil e +Galeria, com apoio da Sinny Assessoria – para acompanhar de perto as filmagens do projeto dirigido por Paulo Machline, produzido por Nora Goulart e estrelado por Irandhir Santos.

Fomos recebidos no início da tarde por Nora, que nos guiou pelos corredores do set, apresentou a equipe e comentou o entusiasmo em torno da produção. Havia movimento por todos os lados: contrarregras trajando camisetas do Grêmio circulavam com equipamentos, enquanto Irandhir, concentrado, ensaiava uma cena em que carregava um disco de vinil de Carlos Gardel de um lado para o outro.

E em meio a bandeiras tricolores e o som do tango, era possível sentir o clima de reencontro com uma história que, por muito tempo, ficou esquecida. Nesse caminho, batemos um papo de cinema exclusivo com Paulo e Irandhir. Acompanhe!

COLIGAY

ORGULHO NAS ARQUIBANCADAS

A Coligay surgiu em 1977, no auge da ditadura militar, e nasceu dentro da torcida do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense. Liderada por Volmar Santos, o grupo se destacou por desafiar o conservadorismo de uma época em que ser gay – e ainda mais torcer abertamente por um time de futebol – era um ato de coragem. Mesmo enfrentando olhares atravessados e preconceito, o coletivo se tornou símbolo de resistência e pioneirismo, abrindo espaço para novas expressões de identidade no esporte.

A Coligay nos anos 1970
A Coligay nos anos 1970

IRANDHIR SANTOS

ENTRE O FUTEBOL E A IDENTIDADE

A trama, segundo revelado, acompanha Ramon (Irandhir), um cabeleireiro gremista que, ao lado dos amigos, transforma as arquibancadas hostis em palco de resistência e alegria. E foi justamente essa união que despertou o interesse do ator principal.

O convite veio através da Casa de Cinema. Falaram resumidamente da ideia. E quando eu escutei a palavra Coligay… me despertou uma curiosidade gigante, porque era uma palavra que juntava dois mundos que eu amo e dos quais eu pertenço, que é ser gay e amar futebol”, contou o ator, sorrindo. A curiosidade rapidamente se transformou em encantamento: “quando eu li o roteiro, eu vim entender do que se tratava, da potência que se tratava. Surgiu o convite dessa forma, delicada, mas com um projeto nada discreto – exuberante, bonito e potente como ele é”.

UM APAGAMENTO QUE PERSISTE

Irandhir admitiu que nunca havia ouvido falar da Coligay antes do convite, e essa descoberta o deixou intrigado: “não tinha ouvido. E fiquei me perguntando, inclusive, o porquê. E isso não é à toa, que essa história seja até hoje não tão conhecida, principalmente fora daqui de Porto Alegre, do Rio Grande do Sul”. Para ele, trazer essa história à tona é uma forma de reparar um esquecimento histórico: “imagina você ter a primeira torcida oficialmente gay, organizada para torcer por um time de futebol aqui no Rio Grande do Sul… é uma história incrível que merece ser vista”.

O FUTEBOL AINDA DENTRO DO ARMÁRIO

O ator também refletiu também sobre o presente. Embora a sociedade tenha avançado, o ambiente do futebol ainda carrega marcas de exclusão. “O futebol perde muito ainda em não se abrir para outros públicos… deixa de ser democrático. A gente está falando de uma história que aconteceu há quase 50 anos. O que de lá até cá mudou? Não houve progresso”. Ele, inclusive, citou um episódio recente que ilustra como o preconceito continua vivo: “semana passada, um casal gay torcedor do Flamengo postou uma foto no estádio e acabou recebendo muitas mensagens agressivas. O futebol permanece ainda sendo um ambiente muito masculino, muito heteronormativo, muito machista”.

Mesmo assim, o ator reforçou seu amor pelo esporte e a importância de ocupar esse espaço: “eu sou apaixonado por futebol, eu sou gay assumido e sinto isso quando estou nas arquibancadas. É muito doloroso você sair do estádio ouvindo manifestações homofóbicas. Mas jamais deixarei de gostar de futebol e de frequentar esse espaço”.

Cena de Coligay
Cena de Coligay

PAULO MACHLINE

RESGATAR O QUE FOI SILENCIADO

Entre uma pausa nas gravações e ajustes de iluminação, o diretor Paulo Machline refletiu sobre o significado histórico do projeto: “esse apagamento histórico é uma coisa que a gente vê acontecer em diversos lugares da sociedade. O nosso país, o Brasil, ele tem uma vocação ao contrário, de apagar essa própria história”. Machline enxerga a Coligay como parte de um movimento muito maior do que o futebol – um símbolo de luta por direitos civis e identidade: “o movimento aparece ali no final dos anos 1970 e simboliza um movimento muito mais amplo do que simplesmente o futebol. A luta pelos direitos civis, pelos direitos de identidade. Algo muito significativo, que deveria ser mais comentado”.

O AUGE E O DESAPARECIMENTO

O diretor lembra que a trajetória da torcida coincidiu com um dos períodos mais vitoriosos do Grêmio: “Às vezes se esquece, mas veja: essa torcida começa com o Grêmio sem ganhar nem Gauchão (campeonato gaúcho), depois ganha o Gauchão, ganha o Brasileiro, ganha a Libertadores e ganha o Mundial. E daí a Coligay acaba”. Para ele, revisitar essa história hoje é essencial – e urgente: “trazer essa história em 2025, no momento onde os assuntos relacionados a essa história ainda estão em questionamento, é uma coisa impressionante a gente ainda ter que reforçar isso, pois já deveria ter o espaço que merece. Mas estamos honrando com esse trabalho. Estou muito empolgado”.

CINEMA COMO ESPAÇO DE MEMÓRIA

Machline encerrou com um misto de entusiasmo e reverência pelo legado da torcida: “é uma honra, uma responsabilidade e uma oportunidade que a gente tem para trazer à tona novos valores, o movimento que foi a Coligay, essa organização de resistência, de luta pelos direitos”. E completou: “desde que eu fui convidado para participar desse projeto, eu vejo que é uma oportunidade e também uma enorme responsabilidade poder mostrar a Coligay. Ela sai ali do universo de uma torcida, de um time, por um exemplo de uma luta de classe, de uma luta de pessoas por serem quem elas querem ser”.

ÚLTIMOS TAKES DE UM DIA COLORIDO

No final da tarde, o Papo de Cinema se despediu da equipe, enquanto o movimento no set ainda seguia intenso. Entre figurinos azuis e pretos, risadas de bastidores e o som de mais uma claquete batendo, ficou a sensação de que a história da Coligay – antes silenciada – enfim voltará a ecoar, agora pelas lentes do cinema brasileiro. Um resgate que promete emocionar e provocar, devolvendo visibilidade a quem abriu caminho para novas formas de torcer, amar e existir. Por enquanto, ainda não há previsão de estreia para o filme nem para a série, mas a expectativa é de que o público em breve possa conhecer de perto essa celebração.

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Fanático por cinema e futebol, é formado em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Feevale. Atua como editor e crítico do Papo de Cinema. Já colaborou com rádios, TVs e revistas como colunista/comentarista de assuntos relacionados à sétima arte e integrou diversos júris em festivais de cinema. Também é membro da ACCIRS: Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul e idealizador do Podcast Papo de Cinema. CONTATO: [email protected]
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