12 ago

Opinião :: Desgoverno, desmonte e desalento na Cultura

Entre os apoiadores incondicionais do presidente da república Jair Bolsonaro, mesmo diante da atuação questionável (para dizer o mínimo) do governo durante uma pandemia sem precedentes, provavelmente há os que se prestem a defender a sua política relativa à Cultura. Para estes, trabalhadores das artes talvez desempenhem funções meramente ilustrativas. Nesse panorama, importantes seriam grileiros, posseiros, milicianos e os madeireiros ilegais que fazem arder a Amazônia? Persiste uma sensação de impotência diante do cenário desse Estado alicerçado nas bancadas da bala, da bíblia e do agronegócio. Aparentemente, há um esforço para arrebentar uma cadeia que, não fosse a sua importância artística, ainda configuraria uma indústria altamente lucrativa. Lá atrás, nos idos dos anos 1990, quando o não menos controverso Fernando Collor de Mello implodiu o nosso cinema com uma canetada, a gritaria contrária foi localizada, inclusive pela campanha que já vinha sendo articulada para tornar a EMBRAFILME obsoleta. Parece que estão tentando fazer o mesmo com a ANCINE, entidade que, para desespero de uns, não pode sucumbir somente pela autoridade de um mandatário. Por isso estão aparentemente a transformando em inimiga.

Mas, fico cá pensando com meus surrados botões: quanto vale/custa esse desmonte? A ameaça oriunda dos campos artísticos soa tamanha que foi cogitada a transferência da Cinemateca Brasileira para Brasília em meio a uma das maiores crises sanitárias da nossa História. Não há dinheiro sobrando, claro, então a saída foi incumbir asseclas de captarem recursos para a operação estratégica. Porém, problema é o evidente desejo manifesto de que determinados grupos, organizações, entidades e articulações morram à míngua. Essa campanha de inviabilização está em diversos setores, sendo visível tanto na atual gestão da ANCINE quanto na vontade do ministro da Economia, Paulo Guedes, de elevar os impostos sobre os livros. Se não é possível queimá-los, proibi-los, então que se tornem inacessíveis? Não tenho a menor dúvida de que muitos a choramingar em Lives por aí em virtude da falta de oportunidades nessa desgraçada Era pandêmica apertaram 17 nas urnas e efetivaram a ameaça. Ninguém pode dizer que foi enganado. Bolsonaro apenas mentiu quando afirmou ser íntegro, no mais segue um plano organizado com cara de caótico.

Durante sua campanha política, o então candidato se escondeu até quando pode dos debates, se esquivando de conversar com adversários políticos. Mais de 50 milhões de pessoas não se importaram em dar um cheque em branco a quem não apresentou projetos concretos. Ao campo artístico, as poucas promessas vinham embaladas no surrado invólucro da luta anticomunista. Então, a você da classe artística que consagrou tal proposta, quando muito esperando que ameaças não fossem cumpridas (?), sinto em dizer que nos estrepamos por conta disso. A despeito de várias fragilidades, a anterior guinada à esquerda tratou de consolidar políticas públicas de incentivo, de criar terrenos propícios e fertiliza-los. A falta de editais de fomento, o fechamento arbitrário de instituições tradicionais, as rotulação criminosa dos artistas como bandidos sustentados por uma verba pública que, a gente sabe, é desviada a vários gabinetes cada vez mais inchados do Executivo e às rachadinhas parlamentares, cria um redemoinho que nos priva da certeza de ainda haver um mercado no qual apostar. Tudo isso faz parte de um plano de cunho ideológico.

Ancine é investigada por paralisação no financiamento de filmes

Cinemateca Brasileira é intimada a entregar chaves ao governo

A política de obsolescência programada da Ancine

A Escola Darcy Ribeiro, uma das mais tradicionais quanto à formação audiovisual, está próxima de ser despejada do prédio ocupado por ela há mais de 20 anos. A reintegração da posse ao proprietário, no caso os Correios, foi conduzida acentuando um clima de terror imposto à administração desse lugar de disseminação de conhecimento e construção de narrativas. O gesto autoritário de retomar as chaves da Cinemateca Brasileira com a ajuda da Polícia Federal, além da falta do plano à administração desse espaço vital, é outro sintoma claro de uma política de desmantelamento. Já havia articulação à municipalização da entidade, com São Paulo assumindo a administração e os custos da mesma. Agora, me digam: se a federação não tem como arcar com a Cinemateca Brasileira, porque evitar que outra unidade se encarregue de sua manutenção? Afora brigas intestinas e obscuras, é claro que dentro dos planos do bolsonarismo retrógrado que nos comanda não há espaço para flexibilizações do tipo. Memória audiovisual, preservação de bens imateriais de valor incalculável? Supérfluos, dizem alguns dissimulados.

Pensar sobre quanto nos custa esse desmonte provavelmente ainda é algo precoce, mas infelizmente urgente diante do horizonte que se aproxima. Toda uma cadeia tende a ser desarticulada/inviabilizada pela atuação da ANCINE aparentemente contrária às classes que ela deveria preservar em primeiro lugar. Desaprovação de contas de filmes lançados há quase 20 anos, entre outros mecanismos, provavelmente vão criar embargos e impossibilitar que certos atores importantes desse mercado sigam na ativa. (Pseudo)Pendências estão sendo arbitrariamente colocadas na mesa. Que tristeza imensa. E os órgãos reguladores não vêm fazendo outra coisa senão tornando ainda mais difícil, às vezes beirando à interdição, a produção de arte no Brasil. Há muitos raivosos que dizem: “por que esses vagabundos (sic) não procuram a iniciativa privada?”. Amigo (da onça), até mesmo as mundialmente celebradas superproduções da Marvel contam com incentivos fiscais, num processo que une iniciativas privadas e públicas para aquecer diversas economias confluentes. O que testemunhamos, infelizmente com poucos recursos de revide, de mãos atadas, é a articulação da vontade de limar os que nos levam a refletir, nos divertem e nos engrandecem.

E como a reflexão deve ser contínua, dinâmica e avessa às excessivas cristalizações, me parece essencial que pensemos em alternativas, tanto para as lutas pela manutenção de certos mecanismos essenciais como às possibilidades de produção “apesar” do Estado. Não se trata de uma matéria fácil, principalmente em tempos de pandemia, em que as articulações tendem a ser enfraquecidas diante da necessidade de ainda manter o distanciamento social. Alguns produtores e realizadores têm falado que há um campo enorme a ser explorado diante da ocupação do mercado pelo streaming. E essa ocupação de espaço é uma notícia a ser celebrada, apesar dos diversos pesares diários. Mas, igualmente soa urgente ter em vista que cinema, série, teatro, música, poesia, literatura, enfim, toda e qualquer manifestação artística, tem de ganhar terrenos para além dos condicionados pelas leis mercantis da oferta e da procura. É preciso evitar conformar-se que o mercado, essa quimera esfomeada e cruel, vai abraçar todas as propostas e celebrar o risco. Há muito a ser pensado. Certo é que temos um mundo a perder….

Marcelo Müller

Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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