12 mar

The Twentieth Century :: “A cada filme eu tento lançar o Titanic de novo, sabendo que ele vai afundar”, explica Matthew Rankin

Em meio à 70ª edição do Festival de Berlim, repleto de dramas elegantes e comédias moderadas, poucos filmes chamaram tanta atenção quanto The Twentieth Century (2020), uma experiência estranha e fascinante que levou o público local às gargalhadas.

O diretor Matthew Rankin adapta a história real de Mackenzie King (Dan Beirne), que assumiu o cargo de Primeiro Ministro por acidente na virada do século XX, a um patamar ao mesmo tempo cômico e absurdo. O diário real do político centrista se transforma na jornada de um homem mimado, crescido para se tornar um político de sucesso, buscando esconder o fetiche por sapatos femininos que pode arruinar a sua reputação.

As imagens trazem um estranhamento à parte, com seus estúdios assumidamente falsos, desenhos e espelhos, além de mulheres barbadas, homens vestidos de mulher e muitas competições de virilidade entre os homens de poder. Em tela próxima do quadrado, imagem granulada e aspecto de filme mudo, Rankin criou uma comédia aplaudida em Berlim e premiada em Toronto. O Papo de Cinema conversou com o cineasta sobre o projeto:

 

Matthew Rankin e a equipe de The Twentieth Century apresentam o filme em Berlim. Foto: Divulgação / Berlinale

 

Quando assisti ao filme, fiquei surpreso com a estética, que me lembrou uma versão colorida de Metrópolis ou O Gabinete do Dr. Caligari.
Eu queria trabalhar com a tradição da artificialidade. Não diria que o expressionismo alemão foi a minha inspiração direta, embora alguns filmes como Metrópolis (1927), certamente, e A Imperatriz Vermelha (1934) tenham me influenciado. Mas eu me apropriava do expressionismo, de Fellini, do animador tcheco Karel Zeman, de Guy Maddin, Terry Gilliam, e mesmo de Europa (1991) de Lars von Trier, que exerceu um grande impacto em mim. Então apostei nessa tradução da artificialidade que sempre existiu à margem do cinema. Normalmente, quando se faz filmes, busca-se afastar o artifício para que pareça o mais real possível, um simulacro incontestável. No entanto, gosto da corrente paralela que questiona esse pensamento e faz do artifício uma virtude estética.

Era isso que me interessava nesse projeto, por dois motivos distintos: primeiro, eu queria explorar a beleza estética da artificialidade, apesar do orçamento reduzido. A ideia era reproduzir uma escala épica, mas se eu mirasse nas imagens polidas e monumentais de um filme de época de Spielberg, eu esgotaria todo o meu orçamento em questão de horas. No entanto, se eu criasse um mundo falso, eu teria meios de realizá-lo. Segundo, isso condiz com o histórico que venho traçando como artista. Eu sempre desejo que o espectador esteja consciente do dispositivo e da artificialidade do mundo retratado. Em nível metalinguístico, a própria estrutura das cinebiografias é bastante falsa.

Como trabalhou com os atores para encontrar o tom da comédia paródica?
Os atores precisavam andar por uma linha muito tênue entre o honesto e o irônico. Sempre penso que, em geral, o diálogo dita o tom do humor. Neste caso, os diálogos são muito estranhos, num inglês que ninguém mais usa. Então muitos atores são capazes de ler este texto e perceber imediatamente que não se trata de um roteiro naturalista. É algo maneirista, melodramático. Além disso, percebemos que buscar risadas a qualquer preço seria um erro – era necessário interpretar os personagens seriamente. Assim, o universo se torna muito mais absurdo. Eu permiti que algumas atuações em particular fossem um pouco mais exageradas, porque é preciso criar texturas e variações, mesmo assim, não acredito que o ritmo jamais vire burlesco ou patético.

Eu senti que tinha encontrado um tom preciso, e precisava calibrar os atores dentro deste nível. No final das contas, cabia encontrar atores capazes de compreender esse registro e ainda ser criativos dentro dele. Por isso, a escolha de elenco foi fundamental. Todos os atores foram capazes de entrar nessa frequência estranha com facilidade, fornecendo boas possibilidades de jogo cênico. Dan Beirne, que interpreta o personagem principal, possui um talento muito particular que já foi utilizado pelos projetos mais distintos, mas neste caso em especial, ele conseguiu captar uma vulnerabilidade emocional que me parecia muito verdadeira, ao mesmo tempo em que adotava um registro de atuação bastante estranho e pertinente ao projeto. Ao mesmo tempo, ele era hilário. Esse é um equilíbrio muito delicado.

 

 

O filme está repleto de metáforas, algumas explícitas, outras subentendidas. Ao invés de mostrar a masturbação, você revela um cacto gigante que jorra esperma. Como trabalhou estes símbolos?
No que diz respeito à sexualidade, existe uma ambiguidade na vida de Mackenzie King. No diário dele, existem algumas representações tortuosas de seus relacionamentos e seus desejos. Ele nunca admite o que deseja de verdade, nem o que fazia em segredo. Às vezes ele diz “Eu cometi um pecado horrível”, e pensamos que vai começar a explicar algo, mas não ele continua. Em outros momentos ele começa a escrever uma frase, mas depois risca por cima, e rasga algumas páginas. Existem pulsões reprimidas na vida dele, algo muito ambíguo. Ele me lembra James Stewart em Um Corpo que Cai (1958), esse homem sem sexualidade aparente, ironicamente envolvido numa obsessão erótica, em duas esferas que parecem incompatíveis. Nada sobre isso tem sentido, e eu gostava dessa indefinição. Sabia que Mackenzie jamais consumaria o ato – não consigo imaginá-lo tendo qualquer tipo de relação sexual com outro ser humano. Por isso, a sexualidade precisava existir ao redor dele, por todos os lados, mas jamais vivenciada diretamente por ele.

Como este retrato da política canadense de 1899 dialoga com a política canadense hoje?
Acredito que o filme seja muito atual, tanto no Canadá quanto em outros países. Fico muito preocupado, politicamente, tanto no Canadá quanto no resto do mundo, com a ideia do Centro. Sinto que hoje vivemos num mundo em que o elástico das ideologias políticas está sendo esticado demais. A Internet tem um papel fundamental nisso: parece que encontramos dois exércitos se enfrentando, cada um tentando ir mais longe, e ser mais agressivo que o outro. O Centro político está evaporando. Eu nunca votei no Centro, mas acredito que Mackenzie King representa o que chamaríamos de centrista tradicional. Ele sempre buscava uma forma de acordo entre duas partes, através de concessões. Olhando por uma perspectiva generosa, trata-se de uma postura democrática: o Centro é um espaço onde se permite escutar o outro lado, algo muito saudável numa democracia. Ele possui valor por isso.

Ao mesmo tempo, o Centro pode ser um espaço oportunista, onde as pessoas fazem tantos acordos e concessões que perdem sua essência política. São oportunistas dispostos a seguir qualquer grupo que lhes permita permanecer no poder. Isso pode ser muito perigoso. No Canadá, o Primeiro Ministro encarna essa tradição. Ele parece progressista e defende os direitos LGBTQ, mas ao mesmo tempo, vende armas à Arábia Saudita. Ele defende direitos indígenas, no entanto, toma as terras deles para construir tubulações de petróleo. Ele defende o meio ambiente, mas trabalha junto ao lobby das indústrias petroleiras. São coisas incompatíveis. Sinto que, sempre que celebramos a existência de alguém como Mackenzie King na política, celebramos esta forma de comprometimento entre partes adversas. Tenho pensado muito nisso. Não acredito ter feito um filme ativista, nem um filme político em si, mas este é um projeto preocupado com a ideia do Centro. A história de Mackenzie é marcada por confusões familiares, românticas e políticas. Isso ainda ressoa nos tempos de hoje.

 

 

Você diz não se tratar de um filme político no sentido de partidário, mas pelo fato de retomar períodos políticos reais pelo prisma da paródia, ele não deixa de constituir um projeto político, certo?
Claro, concordo com você. Só considero importante frisar que não se trata de um filme ativista. Muitas vezes, a arte política representa o mundo de modo simples demais. Para mim, a arte pode criar uma perspectiva sobre a complexidade do mundo. Isso não significa necessariamente ter as respostas certas a transmitir. Pegue os filmes de Michael Moore, por exemplo. Ele sempre acredita ter as respostas certas, fornecendo ao mesmo tempo o problema e a solução. The Twentieth Century não tem nada a ver com este raciocínio. Ele está muito mais preocupado em fazer as perguntas certas. Mas você tem razão, este não deixa de ser um gesto político.

Acredita que espectadores de outras nacionalidades compreenderão o filme da mesma maneira que os canadenses?
Eu me fiz esta mesma pergunta. Este é um questionamento importante: será que um brasileiro o entenderia, por exemplo? Mas de certo modo, acredito que isso valha para todos os filmes. Mesmo em Parasita (2019), tenho certeza que algumas piadas e referências só fazem sentido para os sul-coreanos. Eu me lembro que fui a Nova York uma vez, e já conhecia bastante sobre o Brooklyn através dos filmes. Quase todos esses filmes faziam piadas sobre Nova Jersey. Eu nunca entendia bem, mas percebi que os americanos adoravam isso, riam sempre. Essa era uma piada fácil, que se comunicava apenas com o público local. Acredito que isso faça parte de qualquer filme. O prazer de assistir a filmes consiste em ser levado para outro lugar, imergir numa realidade diferente da nossa e aprender com ela. Portanto, cada filme é um novo convite. The Twentieth Century aborda o Canadá, é claro, mas ele se parece mais o Canadá em outro planeta. Mesmo os canadenses achariam este mundo estranho. O filme traz um estranhamento voluntário.

Esse cinema do estranhamento é algo que você pretende continuar em seus próximos projetos, ou esta era uma linguagem adequada a este filme em particular?
Sinto que essa linguagem nasceu da demanda específica deste projeto. Fiz outros filmes, especialmente os curtas-metragens, muito mais focados no formalismo, ao invés da narrativa. A ideia de usar linguagem abstrata para contar uma história me apaixona. Fiz muitos filmes em estúdio, mas The Twentieth Century foi a apoteose dessa abordagem. Ainda me preocupo bastante com as estruturas sociais, então me dedico a filmes sobre fronteiras, nacionalidade, sexualidade e identidade. Elas são parte fundamental das histórias que pretendo contar. Neste caso, a tradição artificial permitiu que a forma se adequasse ao conteúdo. Mas meu próximo filme será uma mistura entre documentário e ficção, com imagens em externas e locações, e filmado inteiramente em esperanto.

 

 

Você certamente não procura os caminhos mais fáceis!
Eu gosto de me colocar em perigo. Um dia desses, determinaram meu “animal espiritual”, que por acaso é o salmão. Faz sentido. Eu me jogo absurdamente contra a corrente, em busca de alguma forma de morte durante meu gesto de expressão artística. É isso o que eu tento fazer a cada novo filme: lançar o Titanic pelo oceano mais uma vez, sabendo muito bem que ele vai afundar. Gosto que as coisas sejam difíceis. Às vezes isso significa preparar projetos difíceis de produzir, mas às vezes isso significa apenas se colocar em perigo. Fiz três filmes seguidos com essa estrutura de estúdio criando uma narrativa meio abstrata, inspirada nos mestres artificiais. Agora quero fazer algo diferente, quero me desestabilizar. Para a criatividade, é importante se desafiar.

Pretende manter a mesma tradição geométrica, com espelhos e reflexos?
Sim, sinto que não tenho muita escolha quanto a isso. Tenho trabalhado como diretor visitante em alguns parques nacionais canadenses recentemente. Filmei alguns curtas-metragens atmosféricos, e mesmo trabalhando em espaço natural, o resultado ainda era muito geométrico, muito formalista. Nada era construído, trabalhei apenas com locações. Mas isso depende mais da minha maneira de olhar o mundo do que do objeto a ser filmado. Obviamente, alguns traços estarão presentes, como o senso de humor que me agrada. Acredito que os diretores podem ser arrogantes ou curiosos. Ou tentam reconstruir o mundo, contraindo as formas e espaços para caberem dentro da ideia de imagem que criaram para si mesmos – de maneira bastante napoleônica -, ou se colocam numa posição de curiosidade, de descoberta, investigando para ver o que o mundo lhes oferece. Meus últimos filmes foram muito napoleônicos, contraindo o mundo para caber nas minhas ideias. Eu literalmente desenhava cada cena, e a equipe precisava recriar exatamente aquilo. Agora, estou tentando explodir este caminho. Será mais desafiador me abrir a novas perspectivas e reagir àquilo que estiver acontecendo à minha frente. Veremos como me saio nesses próximos passos.

 

Bruno Carmelo

Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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