29 mar

Pajeú :: “Quanto menos sabemos da nossa cultura, mais somos dominados pela cultura dos outros”, diz Pedro Diógenes

Transitando entre ficção e documentário, o cineasta Pedro Diógenes faz de Pajeú (2020) um exercício de fabulação e, ao mesmo tempo, uma ponderação sobre o impacto do ser humano na natureza. Vencedor do Prêmio de Melhor Longa-metragem Brasileiro na mostra Novos Olhares do 9º Olhar de Cinema, o filme tem como protagonista a jovem Maristela (Fátima Muniz), que sonha com uma criatura no rio Pajeú. Instigada por essa figura, ela começa a pesquisar sobre o curso d’água em torno do qual se desenvolveu Fortaleza, a capital do Ceará. Pedro Diógenes coloca essa personagem ficcional perambulando por monumentos, arquivos e demais espaços que possam ajuda-la numa jornada de rememoração que tem um quê de resistência. Ela descobre que o gradativo processo de apagar o Pajeú da vista dos moradores da cidade tem desdobramentos catastróficos para a metrópole. Ao passo em que se torna o vilão em dias de enchente, o Pajeú continua sendo limado da geografia e da memória locais. Conversamos remotamente com Pedro Diógenes para saber sobre a gênese desse projeto e sua opção por uma linguagem híbrida. Confira.


Como surgiu a ideia de Pajeú
?
De alguma forma, Fortaleza sempre é uma inspiração para meus filmes. É cenário ou tema. E o riacho Pajeú é um símbolo, inclusive dessa ideia de que Fortaleza cresce e desaparece ao mesmo tempo. A especulação imobiliária afeta drasticamente o meio ambiente. Fortaleza nasce em torno do Pajeú, o riacho permite que a cidade seja habitada nas suas margens e atualmente ele é quase completamente soterrado e esquecido. Então, sempre tive esse vontade de falar sobre o Pajeú. Em 2017 passei esse desejo para o papel, escrevi um projeto que acabou sendo contemplado num edital da secretaria da cultura. Mas, o filme foi se transformando, pois ele nasceu como documentário clássico.

Exatamente isso que eu iria perguntar, se desde o princípio a ideia era estabelecer um diálogo entre ficção e documentário, mas pelo visto não…
No começo ele era um documentário bem mais tradicional. Com o passar da pesquisa, senti a necessidade de ter alguém conduzindo o filme, uma personagem que pudesse transmitir simultaneamente informações e sensações. Pesquisar sobre o riacho causava a mim, e a toda a equipe, um turbilhão de sentimentos e sensações. Sentimos a necessidade de deixar o documentário mais próximo do espectador para que ele pudesse reter também outros tipos de emoção. Aí surge a personagem ficcional que guia o filme. Então, aos poucos ele chegou a esse lugar híbrido.

E como funcionava a dinâmica com os entrevistados? Eles eram previamente avisados que a Maristela era uma personagem? São perceptíveis pequenas diferenças nas interações…
A Maristela tem encontros de naturezas diferentes. Há os encontros com o Yuri Yamamoto, o parceiro dela de casa, 100% ficcional, inclusive ensaiado. Há os encontros com os especialistas, que foram previamente combinados. Mas, quem se encontrava com eles era sempre a personagem, não a atriz. Era tudo marcado, até porque estávamos em instituições. As pessoas sabiam que estávamos fazendo um filme sobre o Pajeú, mas não sabiam que a personagem era ficcional. Eles não conheciam a terceira camada. E há os encontros com as pessoas na praia, que não foram programados. Os depoentes não eram informados do que estava acontecendo. Claro que imaginavam algo assim que chegava câmera, som e equipe. A Fátima não fazia ideia do que iria encontrar. É um desafio muito grande do ponto de vista da realização isso de lidar com o acaso. Então, é importante isso das naturezas diferentes dos encontros.  

Como foi a preparação com a Fátima Muniz, especialmente nesses instantes em que ela tem de interagir com o inesperado que vem dos personagens reais?
Quando chegamos a esse formato, sabíamos que a dinâmica seria desafiadora para a atriz. Então, chamei alguém em quem confiava, de que já tinha visto vários trabalhos. Eu sabia que em determinados momentos ela seria a diretora do filme. O controle estaria com ela. Por isso, a Fátima precisaria estar muito ciente da personagem e de que tipo de filme estávamos fazendo. Foi tudo muito construído com ela desde o começo. Teve ensaios com o Yuri, mas muito do processo teve a ver com conversas e trocas numa base comum. Lembro que o nosso primeiro encontro para o filme estava marcado para um dia em que aconteceu uma grande greve da educação. Isso era maio de 2019. Até porque a personagem era professora, achamos melhor nos reunirmos na manifestação. A Fátima trouxe muito da vida dela para a Maristela, de características a coisas que estava passando. Ela carrega um pouco a unidade do filme, essa unidade um pouco tensa. O desafio era grande, mas nos preparamos bastante antes com uma base de informação.

Mais ou menos na mesma época de Pajeú, surgiu Currais, do David Aguiar e Sabina Colares, outro filme cearense que utiliza um personagem ficcional diante da realidade num resgate histórico. Em que pesem as muitas diferenças, a que atribui essa semelhança vital? A uma tendência local?
Acho que essa vontade de fustigar a História tem a ver com o esquecimento. Talvez eu, Sabina e David estejamos nesse movimento de resgatar coisas para elas não serem esquecidas. Talvez pensemos que fortalecer nossa história seja fortalecer a gente. Quanto menos história temos, mais somos dominados pelas histórias dos outros. Quanto menos sabemos de nossa cultura, mais somos dominados pela cultura dos outros. Agora, a utilização dessa mistura entre ficção e documentário está na tradição do cinema brasileiro. O 33 (2002), do Kiko Goifman, o Um Passaporte Húngaro (2001) da Sandra Kogut, o próprio Eduardo Coutinho vira personagem dos próprios filmes…Eu já tinha utilizado isso de formas diferentes em filmes anteriores, num curta chamado Vista Mar (2012) e noutro chamado Retrato de uma Paisagem (2012). Acho que é uma forma de deixar o documentário mais próximo do espectador, com mais sentimento.

No Pajeú há sonhos com uma criatura. Os sonhos inquietam, despertam a protagonista, mas não a amedrontam no sentido clássico. O medo resulta da pesquisa sobre apagamento. Gostaria que você falasse um pouco sobre essa utilização do cinema de gênero nos seus filmes.
Você tocou num ponto que foi um processo de descoberta enquanto fazíamos o filme. Essa coisa do ser, da criatura. Ela nasceu mais de terror, mesmo. Porém, à medida que íamos dialogando com a equipe de arte sobre a concepção da criatura, mudamos ao ponto de chegar a esse lugar. Ela não está ali para assustar, mas para pedir socorro. Ela foi mudando ao longo do processo. Continua sendo assustadora por ser diferente e estranha, mas fomos alterando o seu teor. Agora, especificamente sobre a utilização do gênero, sou um cara que faz cinema vindo da cinefilia. Então é natural esse desejo de utilizar os códigos dos gêneros, não como fetiche, mas como parte do meu repertório, da minha paixão pelo cinema. Os gêneros são ligados às suas realidades, tipo o terror italiano e o norte-americano. Não vamos simplesmente reproduzir isso no Brasil, mas fazemos a nossa releitura com flertes e brincadeiras.

Marcelo Müller

Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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