22 jul

Não Toque em Meu Companheiro traz “uma história belíssima de solidariedade”, afirma Maria Augusta Ramos

Ao longo de sua carreira, Maria Augusta Ramos tem criado documentários questionadores sobre o funcionamento da sociedade brasileira. Sem qualquer forma de didatismo, debateu o funcionamento do sistema penal (Justiça, 2004), a instalação das UPPs no Rio de Janeiro (Morro dos Prazeres, 2013) e o impeachment de Dilma Rousseff (O Processo, 2017), entre outros.

Agora, em Não Toque em Meu Companheiro (2020), a cineasta se volta a um episódio marcante do passado: a crise na Caixa Econômica em 1991, quando 110 funcionários que protestaram contra as medidas neoliberais de Fernando Collor foram injustamente demitidos. Enquanto lutavam por seus direitos, receberam apoio institucional e financeiro dos colegas. Este episódio de solidariedade é colocado em paralelo com as atuais medidas econômicas do governo Jair Bolsonaro. O Papo de Cinema conversou em exclusividade com Maria Augusta Ramos sobre o filme, disponível em streaming:

 

Maria Augusta Ramos. Foto: Divulgação

 

O que te interessou nesta greve específica de 1991?
Foram duas razões, na verdade: primeiro, pela história de solidariedade destes trabalhadores demitidos. Como você sabe, houve a greve contra a adoção de políticas neoliberais na época em que o Collor assumiu. Ele defendia o Estado mínimo, a privatização das empresas públicas e dos bancos públicos, além de criminalizar os servidores públicos, que chamou de marajás. Depois da greve, 110 trabalhadores foram punidos por meio de uma demissão ilegal. Enquanto esperavam uma resposta da justiça, os 35 mil funcionários autorizaram arrecadar 0,3% do salário de cada um para garantir a sobrevivência dos demitidos e de suas famílias. Esta é uma história belíssima de solidariedade dentro do movimento sindical, em todos os sentidos do termo. Acredito que esta história precisava ser contada, e eu queria muito contá-la.

 

O filme traça um importante paralelo entre Fernando Collor e Jair Bolsonaro.
Vivemos algo muito parecido no governo atual. Através desta volta ao passado, quis resgatar esta memória, criando um diálogo com o presente que vivemos agora, e acenando a um possível futuro. Se forem adotadas as medidas pregadas pelo Ministro Paulo Guedes em relação às privatizações, teremos consequências graves. Precisamos considerar estes efeitos para a sociedade e para a economia brasileira. Então o filme cria um diálogo entre presente, passado e futuro. Para contar essa história, eu quis contá-la a partir da perspectiva destes funcionários demitidos, que viveram a redemocratização e participaram das lutas pelas Diretas Já. São funcionários engajados, e queria que cada um deles pudesse contar a sua história pessoal, colocando em perspectiva com esse presente. Seria impossível separar os dois. Eles têm uma reflexão pessoal sobre as propostas do atual governo. Achei importante que as histórias e reflexões deles fossem levadas ao público para que estas pseudo-verdades não fossem mais vistas como inquestionáveis. Hoje, nos vendem a ideia de que o melhor é o Estado mínimo, de que vender empresas públicas vai ser bom para a economia, vai gerar mais empregos, e menos direitos gerarão mais empregos.

 

 

Mesmo tendo fracassado no passado, esta retórica ainda seduz a sociedade.
Esta ladainha neoliberal não condiz com a realidade. Estas falácias precisam fazer parte do nosso debate para não apoiarmos algo de que vamos nos arrepender no futuro – assim como fizemos com o Collor. As medidas dele foram apoiadas na época, mas depois veio o arrependimento com o confisco da poupança. O desmonte do Estado não é um detalhe: trata-se de uma medida estrutural que vai definir o país para os próximos 10, 20, 30 anos. Isso precisa ser refletido com muito cuidado, sem “passar a boiada” rapidamente. O filme busca gerar essa reflexão. A Caixa, no filme, é um microcosmo. Poderia ser o Banco do Brasil, ou qualquer outra empresa pública, porque as questões são as mesmas. Mas a Caixa tem uma importância enorme no país por questões de moradia, crédito a pequenas e médias empresas, geração de emprego, acesso a comunidades carentes etc. A Caixa tem uma função social estratégica importantíssima. Não se pode simplesmente dividi-la, enfraquecê-la e vendê-la. Nem mesmo se pode dizer que se trata de uma empresa ineficiente: nem a Caixa, nem o Banco do Brasil são empresas ineficientes. Pelo contrário, são empresas extremamente eficientes, que geram lucro e possuem uma função social. Não vejo o que o país ganharia através de uma possível privatização dos bancos públicos.

 

As imagens de manifestações costumam ser divididas entre a criminalização por parte das mídias hegemônicas e as imagens das mídias alternativas na Internet. Em 1991, que material você tinha à disposição sobre a greve?
Nós fomos muito felizes porque o Sindicato dos Bancários arquivou vários materiais, de maneira bastante organizada. A TVT também conserva estes registros. Na época de 1990, o protesto era feito pelo boca a boca, com cartazes, com jornaizinhos, com os recursos à disposição. Os trabalhadores conversavam com as pessoas para conscientizá-las. Esses demitidos viajaram o Brasil inteiro, em cada agência, para conversar com os colegas e conscientizá-los sobre a importância da readmissão, explicando por que tinham sido demitidos. Eles explicavam os motivos da greve e os meios como ela estava sendo realizada. Foi um trabalho de formiga, algo incrível. Senti que a gente precisava ver este material, e também ver o discurso do Collor, em paralelo com o discurso do Bolsonaro. Por isso revisitamos a propaganda eleitoral do Collor. Era preciso revisitar esta memória do país. Eu tinha 17, 18 anos na época. Mas precisamos nos lembrar disso para não repetir esta História, que infelizmente está se repetindo. Bolsonaro foi eleito com o mesmo discurso de Collor. Agora os servidores públicos não são mais marajás, e sim parasitas. Os discursos do Estado mínimo, de Deus acima de tudo, e contrário à Cultura, se mantêm.

 

 

Acredita que os riscos à sociedade hoje sejam os mesmos do governo Collor?
É claro que a situação atual é infinitamente pior, mas em termos de modelo econômico, trata-se da mesma proposta. Mas o ex-presidente Collor não teve a capacidade de implementá-lo, porque houve muita luta e a sociedade se opôs. Isso também é interessante: estes trabalhadores vinham de um movimento sindical, e a população brasileira vinha de uma luta a favor das Diretas Já, pela redemocratização. Era outro momento político em relação ao que vemos desde a eleição do Bolsonaro. Talvez as coisas comecem a mudar diante da destruição, das mortes, da total inabilidade de governar. Para mim, existe um tipo de sadismo bárbaro no governo atual. Acredito que este filme seja necessário, sem querer jogar confete para mim mesma. Mas esta memória precisa ser revisitada, tanto pela relação de solidariedade quanto pelo paralelo entre os momentos históricos. Precisamos pensar em nós mesmos enquanto país: como chegamos aqui, e o que queremos hoje enquanto nação? Como vamos sair dessa? Eu me pergunto isso diariamente. Não digo que o filme dá conta disso, de maneira alguma. O filme não te que explicar nada, dar solução nenhuma. Ele precisa promover debate e questionamentos. Os funcionários participantes do filme colocam estas questões em debate: se os bancos forem privatizados agora, os funcionários vão se unir? Os jovens vão lutar para impedir a dissolução da Caixa? Um dos demitidos faz esta pergunta. Agora, está na mão dos jovens.

 

O que significa para você o lançamento do filme em plataformas digitais? Como você compara esta experiência com a estreia nos cinemas de seus projetos anteriores?
Olha, nada se compara com a experiência de assistir a um filme no cinema. É ótimo ter o público reagindo a cada minuto do filme, e escutar os comentários depois da sessão sobre como o projeto comove, incita, angustia. Mas vivemos uma pandemia, então não havia maneira. Fico feliz que exista a possibilidade de ele ser visto pelas plataformas digitais, e mais tarde, na televisão. Que bom que, mesmo no contexto atual, ele possa chegar às pessoas, atingir um público. Neste sentido, eu me sinto feliz. Este é um filme urgente: é importante que seja visto nos próximos meses, diante do que estamos vivendo. Espero que as pessoas gostem, se identifiquem, se comovam com esta história de solidariedade. Precisamos lembrar as coisas boas que o país também tem.

 

 

Você tem feito filmes sobre conflitos presentes, filmados ao vivo, como foi o caso de O Processo. Agora, você resgata um conflito do passado. Como compara estas experiências?
Não Toque em Meu Companheiro é uma exceção dentro da minha obra. Todos os meus filmes até agora se deram através de um registro do presente. É isso que me interessa: registrar a vida enquanto ela acontece, de maneira bem simples. Para isso, convido pessoas reais que me inspiram, e que estão vivendo processos de vida, para participarem do filme. O projeto se desenvolve pela observação do cotidiano destes personagens. Eles me guiam por um universo específico, seja ele o sistema de justiça penal, a justiça da infância e juventude, seja São Paulo em crise, como em Futuro Junho (2015), seja ele um road movie pelo sertão ou uma menina de 11 anos durante um ano de sua vida. Sempre há um processo: mesmo o impeachment, que constitui um processo jurídico-político. Através destes personagens, e da interação deles com o meio (família, cultura, instituições, política), os projetos tentam revelar a sociedade brasileira em suas contradições e mazelas. Tento pensar a realidade que o filme retrata.

 

Em que medida a FENAE se envolveu no projeto?
O filme foi um convite da FENAE, ao mesmo tempo em que tive liberdade total para fazer o filme que quisesse fazer, de modo autoral. Já tive alguns convites da televisão pública para fazer parte de séries, sobre os trens da Central do Brasil, por exemplo, ou ainda sobre o dilema do aborto. Sempre tiveram muito respeito pelo meu trabalho e pela minha visão autoral de diretora. No caso de Não Toque em Meu Companheiro, não se trata de um presente. Não acompanho o cotidiano de personagens no presente, mas contamos uma história que aconteceu no passado, revisitando a memória do país para promover um debate capaz de iluminar o presente. Sinto que pude fazer um filme muito pessoal, porque o mundo do trabalho e do pensamento neoliberal, com suas influências nas relações humanas e pessoais, são muito caros para mim.

Bruno Carmelo

Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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