Lourinelson Vladmir assinava artisticamente como Lori Santos um pouco antes de ganhar o Candango de Melhor Ator Coadjuvante no Festival de Brasília por Para Minha Amada Morta (2015) – papel pelo qual também recebeu uma indicação ao Prêmio Guarani de Revelação do Ano em 2016. Foi nos bastidores do longa-metragem de Aly Muritiba que ele decidiu, por sugestão de Letícia Sabatella, utilizar como artístico o seu nome de batismo. Formado em Direito, Lourinelson exerceu a advocacia depois de estrelar peças teatrais na adolescência. Reaproximou-se da arte por conta da influência de um amigo. Foi o suficiente para mergulhar num processo que o levou a largar a profissão de jurista e a se dedicar, em tempo integral, ao teatro e, mais à frente, ao cinema e à televisão. Em Marés (2019), que chega nesta quinta-feira, 12, aos cinemas, Lourinelson interpreta o protagonista Valdo, fotógrafo de esquerda que tem sua vida conturbada pelos efeitos nefastos do álcool. Conversamos brevemente por telefone com ele para saber sobre processos e métodos. Confira este Papo de Cinema exclusivo com Lourinelson Vladmir.
Nos créditos você consta, assim como outros membros do elenco, como colaborador do roteiro. Como se deu esse processo?
Não poderia te dizer com precisão (risos). A conversa com o João (o diretor) vinha de certo tempo, comigo lendo os diversos tratamentos do roteiro. Participei de vários deles, opinando ativamente durante o andamento. Talvez o crédito a mim seja por esses momentos em que dei sugestões. Não sei seu mereceria ser creditado, mas pode ser (risos). Uma justificativa material por essa menção, que muito me honra, uma verdadeira delicadeza do João, talvez seja até mais pelo cotidiano da filmagem. Realmente não sei lhe dizer onde está precisamente isso. Durante a rodagem há sugestões, mas acho que isso faz arte da natureza do ator, ainda mais quando o roteirista está ali, vivenciando a construção a cena. Conjuntamente catávamos até o ultimo instante a melhor construção de texto e cena. Esse é meu empenho de sempre. É uma parceria mesmo. Então talvez por isso ele tenha me dado o crédito.
O Valdo tem uma dificuldade enorme para encontrar uma saída do alcoolismo. Você chegou a fazer algum laboratório para compreender essa complexidade?
Convivo com pessoas que têm esse problema. Não é algo distante. Amigos e parentes vivem ou já viveram isso. Aliás, infelizmente, é uma coisa comum. O filme tem esta qualidade, a de mostrar a linha tênue entre ser e não ser um problema. Você não precisa ser largado na bebida, caído na sarjeta, para ser alcoólatra. Procurei me lembrar de todas as pessoas com quem convivi, mas que tinham essa característica de alcoólatras funcionais, de conseguirem desempenhar suas atividades e ao mesmo tempo ter uma relação despotencializadora (sic) com a bebida. Procurei as referências vivas, que me parecem as melhores, como geralmente faço. Mas também fui a algumas reuniões dos Alcoólicos Anônimos, especificamente para ter contato com as narrativas. É muito tocante o quanto muitos sofrem com isso. Foi bem importante perceber de perto essas dores. O Valdo não está nessa, não chegou nesse ponto ainda, não acha que precisa falar sobre. O filme mostra como vai sendo construída essa necessidade de se autocriticar.
O filme tem muitas elipses. São pedaços, temporalmente distantes, unidos para formar um painel mais amplo. Fica a impressão de ter sido um conjunto bastante alterado na montagem. Marés acabou sendo muito diferente do que inicialmente era?
Não tanto. Mesmo que a montagem, em alguma medida, não corresponda exatamente àquilo que a gente roteirizou, o conceito está lá. Gostei muito da edição, pois ela deu mais beleza ao filme. Às vezes o roteiro tem de garantir uma tarefa, então em alguns aspectos é mais duro. O João sabia que na montagem poderiam ocorrer coisas. Elas aconteceram, de fato, mas reconheço o filme integralmente. As alterações preservaram a potência e a tensão que o João tentava encontrar. Fui surpreendido positivamente, porque a montagem deu esses saltos, que inicialmente não eram tantos, encarregados de criar certos respiros. O público tem de fazer os cálculos. Fornecer esses espaços é ótimo. Algumas coisas foram tiradas, mas o João decidiu confiar que a plateia resolvia toda essa parada.
O Marés tem uma camada política. O Valdo é de esquerda, chega a ser chamado gratuitamente de “petralha”. Esse verniz lhe parece vital, não apenas como contexto, à compreensão dele?
Naquele momento (da filmagem) ainda havia uma espécie de juvenice (sic), termo que não existe, mas que eu utilizo como sinônimo de uma espécie de juventude que não sai do lugar, que não percebe a nossa falta de percepção do tamanho do problema, algo análogo ao que o Valdo passa. Há essa dificuldade, realmente, de fazer uma profunda autocrítica. Tentei trabalhar numa desmedida que pode gerar uma tragédia. Acho que o Valdo consegue se sair melhor do que o país, no fim das contas. Essa conexão foi virando algo imprescindível. É impossível fazer uma obra audiovisual atualmente e não estar tocado pelo que acontece no seu entorno. Estávamos, à época, em pleno processo do impeachment da Dilma. Nossas primeiras reuniões aconteceram antes do PMDB sair do governo. Acompanhamos essa trajetória que deu no Golpe. É preciso aceitar o espelho que os outros oferecem para a gente.
O que mudou na sua carreira desde o Candango de Melhor Ator Coadjuvante em Para Minha Amada Morta? Como você percebe a importância dos festivais para o cinema brasileiro?
O prêmio foi muito importante, pois me mostrou para o audiovisual. Apenas estar no Festival de Brasília, para mim já era suficiente naquele momento. Mais importante do que o prêmio, em si, é o que significa o festival. O desse ano foi adiado e tenho uma expectativa apreensiva sobre o que será desse espaço referencial, que tem uma trajetória linda, sendo uma espécie de marco fundador. Me entristece tremendamente que uma figura importantíssima, até para a ideia geral de curadoria, como o Eduardo Valente tenha sido demitido. Quem conhece o trabalho do Eduardo sabe que ele é imprescindível. Não apenas o Eduardo, óbvio. Mas a saída dele é um signo claro. Ele é absolutamente respeitado, um profissional admirável. Como um festival não tem institucionalidade nenhuma? Como tudo pode ser virado, assim, de cabeça para baixo? Isso (a troca de curadoria) é horrível, realmente um péssimo indicativo.
Vamos fazer um exercício de achismo: como você acredita que o Valdo se sairia, enquanto sujeito atravessado pelas intempéries da situação política, com o atual governo federal?
Olha, o alcoolismo, até onde entendo, é no fundo um regime de tristeza. É uma saída furada. É doença, mas também tem a ver com a percepção das coisas. Um mundo triste tende a deixar as pessoas doentes. Claro, que nada disso é inflexível. Mas é difícil para quem está numa situação como essa relativizar os baques da realidade. Pela figura que é, acredito que o Valdo não teria uma reação muito favorável, talvez estivesse numa condição bem pior. É algo de achismo. Porém, no filme o Golpe também gerou uma tentativa dele se conectar a algo, de amadurecer. Aliás, essa continua sendo uma tarefa nossa. Perdemos a ingenuidade ou já deveríamos tê-la perdido totalmente. Temos de nos organizar. Talvez o Valdo entrasse nesse processo para resistir, de verdade. É realmente difícil prever (risos).
(Entrevista concedida por telefone em setembro de 2019)
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