“Olha, essa é a primeira vez que eu vivo essa experiência do streaming. A resposta chega bem rápido! As pessoas estão maratonando, respondendo, me mandando mensagens. É difícil acontecer isso com a primeira temporada de uma série: a gente esperava que a primeira temporada gerasse um engajamento maior para a segunda, mas as respostas estão vindo desde agora. Isso é incrível!”. A primeira reação do diretor e roteirista Esmir Filho, ao falar de Boca a Boca, é de surpresa e satisfação.

Também, pudera: a série acaba de chegar à Netflix e já ocupa o top 10 dos conteúdos mais acessados da plataforma. A história sobre uma cidadezinha fictícia do Brasil, onde uma infecção transmissível pelo beijo semeia o medo e a paranoia, dialoga tanto com a onda de conservadorismo quanto com o cenário de pandemia do país em 2020. Caio Horowicz, Michel Joelsas e Iza Moreira interpretam os adolescentes de Progresso, lutando para preservar a liberdade em tempos de crise. O Papo de Cinema conversou com o cineasta sobre o projeto:

 

O diretor Esmir Filho com o elenco de Boca a Boca. Foto: Vanessa Bumbeers / Divulgação.

 

Por que decidiram situar a trama em Progresso, uma cidadezinha fabular, ao invés de uma metrópole?
A cidade de Progresso não tem esse nome à toa: ela é cheia de imagens de controle. É um lugar conservador, repleto de regras, que não enxerga com bons olhos quem vem de fora. Ela está marcada por elementos muito brasileiros e muito nocivos, associados à nova onda conservadora. É uma cidadezinha colonial, linda e restaurada, mas que carrega aquele passado colonial muito forte. A série aborda isso: as divisões de classe, a tensão entre sede e colônia… Muitos aspectos dessa cidade refletem o passado colonialista. O local esconde alguns segredos que vamos desvendar ao longo dos episódios. A cidadezinha também funciona como microcosmo para falar do Brasil: a economia vem da agropecuária, a Internet existe e está acessível a todos. Esta é uma alegoria representativa do Brasil.

 

De fato, os celulares são fundamentais na trama, deixando a impressão de que não existe mais vida privada. Toda intimidade pode ser filmada, e é filmada.
Esse é o grande problema: nós não distinguimos mais o real do virtual. Hoje os adolescentes são assim. Vejo diversas brigas entre pais e jovens girando em torno do conteúdo publicado pelos adolescentes nas redes. Para os jovens, não existe filtro entre postar ou não postar, aquilo sou eu, e o que me representa precisa ir para as redes sociais. É uma nova geração em que os limites do real e da imagem se perdem. Infelizmente, é assim que as coisas funcionam: as pessoas gravam tudo o tempo inteiro, e a vida privada se torna vida pública, especialmente numa cidadezinha. O nome Boca a Boca vem disso, não apenas da infecção, mas da história contada, das informações cruzadas, da presença forte do celular. Os celulares são um personagem essencial da série.

 

Foto: Vanessa Bumbeers / Divulgação.

 

A série foi concebida muito antes do cenário atual, mas é difícil assistir a essa infecção invisível e não pensar na pandemia de coronavírus.
Terminamos a série antes da onda de Covid-19. Quando finalizamos o último episódio, veio o período do isolamento social. Foi assustador ver tamanha semelhança. A história foi criada dois anos atrás, e naquela época, pesquisamos diversas pandemias, sobretudo a de HIV, que foi uma grande questão devido à pouca informação. Desde a gripe espanhola, a peste e a tuberculose, percebemos que o comportamento social nessas circunstâncias é muito parecido. O pânico se mistura com a desconfiança, a falta de informação, o preconceito, o acesso de alguns corpos para tratamento, mas não outros. Ao longo da História da humanidade, as epidemias fazem com que alguns comportamentos sociais se escancarem na nossa frente. Vemos isso tanto na série quanto no mundo em 2020.
Os embates de classes são potencializados. Os temas dessa história já eram bastante relevantes antes da Covid-19, mas agora se tornaram ainda mais. A epidemia é um ponto de partida para a gente falar sobre as doenças da sociedade: as relações entre pais e filhos, as amizades, os amores, as relações de trabalho, de classe etc. Existe uma mensagem transmitida pelo Alex de que estamos todos doentes. Onde está a doença? Seria a infecção? Chico nem desenvolve a doença pela liberdade que tem, mas ele é atravessado pela pior doença que existe: a homofobia. Chico apanha por sua liberdade. Lançamos diversas questões que se tornaram ainda mais próximas do que estamos vivendo. A série permite aprofundar a discussão nos tempos de hoje, porque ela não fala apenas do pânico disseminado, e sim das consequências dentro de uma sociedade.

 

A infecção nunca leva a narrativa aos caminhos da ficção científica. O foco não está na cura, nos medicamentos e tratamentos. Atravessamos a primeira temporada com uma leitura muito ampla sobre a origem e as consequências da infecção.
Sim, existem muitas perguntas em aberto que queremos construir em novas temporadas. No audiovisual, é comum encontrar obras sobre pandemias que tratam o ser humano como paciente, como coisa ou número. Os números da Covid-19 são pessoas, que têm famílias e relações. É isso que a série vem discutir: as pessoas afetadas têm vidas, têm histórias. As pessoas sujeitas a contrair a doença são humanizadas pela história, e esse movimento é proposital. Quando nos limitamos às estatísticas, esquecemos a individualidade. Boca a Boca também não se resume ao mistério da cura. A Manu diz, a certa altura: “Não tem cura, mas este procedimento nos ajuda a viver melhor”. Temos que pensar nisso: dentro de uma situação como esta, enquanto a vacina não aparece, como fazemos para viver melhor? A vacina vai aparecer eventualmente, mas outras pandemias podem aparecer. Enquanto isso, como podemos melhorar enquanto comunidade?

 

 

A sexualidade dos personagens é muito fluida: ninguém é descrito como heterossexual ou homossexual, por exemplo.
Nós queríamos borrar qualquer forma de fronteira, caixinha ou rótulo. Estou falando de desejos fluidos: muitos jovens de hoje já compreenderam que o corpo é um espaço de experimento. Eu posso gostar de uma coisa, e depois descobrir que também gosto de outra. Nós não cabemos em caixas. Gosto que o LGBTQIA+ tenha tantas letras hoje em dia: somos complexos, cheios de nuances, e isso é lindo. Somos seres fluidos, e isso poderia ser uma realidade mais aceita se não houvesse as imagens de controle. A moralidade busca calar os corpos, desrespeitando o desejo e a sexualidade dos indivíduos. A ideia era construir esta fluidez através de personagens carismáticos, com sinceridade nos amores e nas paixões. Fico muito feliz em ver a identificação das pessoas com os personagens, especialmente o Chico, um jovem em fase de experimentação. A personagem da Denise Fraga, maravilhosa, diz: “Quem tem risco de se contaminar é quem cruza a fronteira!”. Isso é cerceamento, é semear o medo como forma de controle social.

 

As pessoas infectadas desenvolvem veias que brilham no escuro, além de olhos opacos, próximos da imagem clássica do zumbi.
Desde o início, criei uma síndrome fantasiosa. Gosto muito do trabalho do neurocientista Antônio Damásio, que pesquisa o funcionamento biológico dos sentimentos no corpo. Ele fala em portas sensoriais, que são nossos sentidos, e como isso capta o mundo exterior. Dentro do nosso corpo, tudo o que é sentimento vira emoção, paisagem corporal. Isso está no choro, no corpo curvado, no peito aberto. Muito intrigado com essa pesquisa, imaginei a síndrome que gerasse falhas no afeto, para que os adolescentes parassem de sentir as coisas, virando apáticos. Este é um símbolo muito forte para a juventude ultraconectada. Os jovens se tornam isolados, mas de modo diferente do nosso isolamento social: na série, temos uma reclusão através de portas de vidro, o que acaba piorando a situação deles. A própria doença se manifesta: a mancha preta passa a brilhar no escuro. Para mim, são nossos sentimentos e desejos correndo no sangue, querendo se mostrar de forma colorida e vibrante. Essas são coisas que aprendemos e levamos para a vida. A epidemia constitui uma grande força de antagonismo às nossas vidas: queremos viver nossos desejos e sensações, mas precisamos atravessar muitos antagonismos na sociedade conservadora em que nos encontramos. A epidemia se torna símbolo da dor de crescimento. Esta é a mitologia da doença.

 

Foto: Vanessa Bumbeers / Divulgação.

 

As cores vibrantes são rosa e azul neon, em tons estilizados. Fico pensando em Tinta Bruta (2018), Boi Neon (2015), Divino Amor (2019) e todas as representações deste neon queer no cinema recente.
A série tem duas cores muito fortes, o rosa e o azul, mas elas não vivem separadas. Elas representam as dualidades: o progresso contra o desconhecido, a sede contra a colônia, os pais contra os jovens. As fronteiras começam a borrar, assim como as cores, que viram o roxo neon. O neon é muito característico das festas, à noite, à maquiagem, ao universo lúdico, algo que eu já explorava no Alguma Coisa Assim (2017). Não pode haver fronteira entre o rosa e o azul: os limites precisam se dissolver, as duas partes precisam se encontrar. A fotografia do Azul Serra trabalhou muito a ideia de as cores e as luzes funcionando como elementos para contar a história. A fotografia tem muita expressividade, e o mesmo vale para a direção de arte: os uniformes têm um aspecto militar, mas de cor rosa. Tudo se mistura muito neste mundo fictício de Progresso.

 

A juventude tem sido o tema central dos seus projetos. O que te atrai tanto nessas narrativas?
Gosto muito da juventude pelo retrato das pulsões, das primeiras vezes. É a coisa de colocar o dedo na tomada, levar choque, mas querer colocar de novo, sabe? Você se torna adolescente quando começa a chorar no quarto sozinho, ou seja, você não chora mais para o outro. Este é um momento de intensidade: as noites não podem acabar, porque elas sempre parecem ser a última noite. Gosto muito de retratar isso, porque imagino que mesmo as pessoas mais velhas guardam na memória essas primeiras experiências de adolescente, ao mesmo tempo difíceis, complexas e deliciosas. A juventude sempre tem a resposta para as coisas. Adquirimos sabedoria com o tempo, mas a pulsão jovem permite dizer as coisas com frescor. Basta ver o movimento secundarista recente em São Paulo. Isso me encanta muito. Eu me sinto um eterno adolescente! Coleciono todas as idades que tive até agora: tenho 37 anos, o que significa que também tenho 36, 35, 34… Trabalho com isso. Meu próximo longa, Verlust (2020), é estrelado pela Mariana Lima e a Andréa Beltrão, e gira em torno de uma relação entre duas mulheres com 60 anos de idade. Mesmo assim, tem uma adolescente importante ali. Sempre acabo incluindo um jovem, porque é ele que mexe com o sistema de forma mais sincera, mais pulsante e menos elaborada.

 

Equipe de Boca a Boca. Foto: Vanessa Bumbeers / Divulgação.

 

Como compara a experiência de diretor e showrunner de série com seus trabalhos de diretor de filmes? 
São duas experiências muito diferentes. Estudei bastante a função do showrunner, que está presente desde a criação até a entrega do episódio. Ele é responsável pelo orçamento, por também ser um produtor, e pelas decisões criativas. É ele que faz o diálogo com o canal: toda a defesa da proposta parte deste profissional. Esta é uma diferença muito grande do cinema. No aspecto de estrutura de roteiro, eu vejo o cinema como um espaço de experimentação. Até crio uma divisão em atos, mas posso brincar muito mais com esse desenvolvimento. Para a série, elaboramos uma divisão em atos para cada capítulo: era preciso ter uma separação em cinco atos, com os personagens agindo na passagem do quarto para o quinto ato, e uma conclusão, além de um teaser no começo. Quanto mais se quebra em atos, mais dinâmica se torna a narrativa, por gerar rupturas muito fortes. As viradas levam o espectador a querer assistir ao episódio inteiro, e o gancho final o leva a querer ver o episódio seguinte. Trabalhamos isso com muito esmero, junto da Juliana Rojas e dos outros roteiristas. Colocamos a nossa assinatura dentro da estrutura da série. Foi um ótimo exercício e um grande desafio.

 

A Juliana Rojas dirige os dois últimos episódios, mas não percebo qualquer diferença na direção por causa disso.
Nós trabalhamos muito juntos, desde a sala de roteiro. Quando fomos filmar, também não nos separamos por completo. Eu dirigi os episódios 1 ao 4, e ela dirigiu o 5 e o 6. Mesmo assim, ela dirigiu algumas cenas minhas, e eu dirigi algumas cenas dela, porque em algumas diárias nós tínhamos duas unidades acontecendo ao mesmo tempo. As cenas complexas foram filmadas juntos. Era impossível nos separar para a cena de piscina: precisamos fazer juntos, além da festa do primeiro episódio. Eu estava presente todos os dias, mesmo quando ela dirigia. Essa também é uma responsabilidade do showrunner: ter um alinhamento do conjunto, desde a voz dos personagens até o estilo da direção, para os episódios não destoarem uns dos outros. A unidade era fundamental.

 

Pensei que a Juliana tivesse cuidado dos episódios com mais efeitos especiais devido à experiência com As Boas Maneiras (2017).
Sim, isso também existiu. A Ju adora aquelas cenas com efeitos especiais, e estava muito empolgada depois de trabalhar com o lobisomem de As Boas Maneiras. Eu estava presente nestes momentos, mas foi ela que  acompanhou de perto as cenas com efeitos, desenhando quadro a quadro, cuidando de cada passo do storyboard. Ela se envolveu demais com esta parte, sem dúvida.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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