Allan Fiterman, apesar do nome gringo, é brasileiro, nascido e criado em São Paulo. Porém, logo quis sair do país, na hora de escolher um curso para a faculdade. Queria fazer cinema no melhor lugar do mundo, pois seu interesse era aprender. Então, tinha duas opções: Londres ou Los Angeles. Segundo ele, o primeiro proporciona um estilo mais autoral, enquanto que o outro é mais comercial. Foi para os Estados Unidos, e acabou ficando onze anos fora. “Não me arrependo por nem um segundo. Foi a melhor experiência que já tive na minha vida”, afirma. Depois de ter passado por todas as etapas, não só em sala de aula, mas também na prática, aprendendo com gente que estava envolvida em projetos indicados ao Oscar ou programas que eram sucesso de audiência na televisão, trabalhou em diversos curtas-metragens, como fotógrafo, até estrear como realizador no longa Living the Dream (2006), filmado no exterior e estrelado por astros como Sean Young e Danny Trejo. Entre os brasileiros presentes no elenco, estava Marília Pêra, que o acompanhou no projeto seguinte, a comédia Embarque Imediato (2009). Já de volta ao Brasil, foi dirigir novelas e minisséries, só voltando à tela grande agora, com Berenice Procura, adaptação do romance homônimo de Luiz Alfredo Garcia-Roza. E foi sobre esse trabalho que o diretor conversou com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!
A trama de Berenice Procura se passa no coração de Copacabana, no Rio de Janeiro. Como foi traduzir essa ambientação das páginas do livro para a tela do cinema?
Quando cheguei no projeto, existia esse livro, do Garcia-Roza, e uma adaptação a ser feita a partir dele. Já existiam 120 páginas de roteiro. Seria impossível filmar tudo aquilo em apenas quatro semanas e ainda ter um longa imagético. Gosto de trabalhar com imagens, então sei que não iria conseguir fazer do jeito que queria naquele formato. Faço televisão e cinema, e sei que são linguagens distintas. Precisava de um tempo para diminuir todas essas páginas, afinal, o prazo para as filmagens seria o mesmo. Foi assim que cheguei a apenas 70 páginas, adaptando coisas do livro que exploravam muito mais aquele espaço de Copacabana, mas que tive que retirá-las.
Tem muitas diferenças entre o livro e o filme?
Na primeira versão, por exemplo, o casal não morava mais junto. Foi quando pensei: puxa, o conflito se dá entre eles, é preciso esse embate. Outra coisa é que o filho era ainda criança. Pensei “puxa, é melhor que seja adolescente, e, ainda por cima, se descobrindo gay”. Tinha essa vontade de trabalhar temáticas mais humanas do que aquelas exploradas pelo livro. Queria falar sobre aquelas pessoas, entende? O suspense tá lá, mas é quase como se fosse uma segunda página. Respeitei o livro, e a trama policial que ele contém, mas, para mim – e estou sendo bem sincero, só porque é para o Papo de Cinema, que eu adoro – acho que o filme se bastaria falando do romance – cuidado com os spoilers! – daquele casal, do que se passa entre a Berenice e o marido, que nem possuem mais uma relação saudável, do fato de você descobrir como é possível ser feliz fora desse casamento. E tem também a não-aceitação, a transexualidade, que é apresentada de uma forma sem ser didática, sem levantar bandeiras, mas inserida em um mundo que existe, de fato, lá em Copacabana.
Mas isso é, também, muito a noite daquela região, enquanto que o filme se passa quase que inteiramente durante o dia.
Acho que essa coisa de trazer para o dia aqueles personagens, principalmente os transexuais, e poder mostrá-los de uma outra forma, e não só na prostituição, introduzindo-os na história com naturalidade, era fundamental. E também trazendo artistas transexuais para fazerem o filme. Não que esteja querendo dizer que o filme é mais do que ele de fato é. Afinal, quanto menos se fala sobre sua própria obra, mais ela se defende por si só. Mas existem essas camadas, e era importante para mim abordá-las. Queria que, quando aos pessoas forem assisti-lo, ao menos percebam essa sensibilidade. Pois tratamos dessa questão de uma forma delicada, sem exploração.
Você chegaste a assistir às outras adaptações de livros do Luiz Alfredo Garcia-Roza para o cinema e televisão?
Não. Comecei do zero, completamente leigo neste universo do autor. Fiz questão, mesmo, de não me envolver com absolutamente nada antes. Quando fui chamado para ser diretor do projeto, na época que cheguei já existia uma adaptação no roteiro, como comentei antes, e o meu papel era trabalhar com aquilo que os produtores tinham em mãos. Precisei descobrir como transformar aquilo em algo menor. Fiz, no entanto, alguns laboratórios, que foram essenciais ao filme. Foi quando chamei o Eduardo Milewicz para atuar como preparador de elenco. Ele foi super importante para o processo. Ficamos um mês ensaiando, estive junto com ele e com os atores – e também com os não-atores. A Brigitte de Búzios, por exemplo, não é atriz. Vários que estão no filme não tinham experiência na frente das câmeras.
Fale um pouco sobre a tua parceria com a Claudia Abreu. Você já haviam trabalhado juntos antes, não?
Pois é, já havia trabalhado com a Cacau, mas na televisão. No cinema, é a primeira vez. Fiz duas novelas com ela, a Cheias de Charme (2012) e a Geração Brasil (2014). Foram nessas oportunidades que estabelecemos uma parceria ótima de trabalho, entre diretor e atriz, que acho necessária e fundamental para você poder contar uma história. A gente tem um entendimento muito legal, mesmo. Uma relação de confiança, sabe? E na hora em que o filme caiu nas minhas mãos, já haviam outros nomes sendo cotados para a protagonista. Mas de cara pensei: “tem que ser a Cacau”.
Você é que a convidou, então?
Sim, falei com ela e a chamei para ser a Berenice. Quando disse “vem fazer esse filme comigo”, ela me respondeu na hora: “quando que é?”. Ela só queria saber a data e quanto tempo levaria. Quando expliquei tudo, foi imediato: “vou fazer”. Nem precisou ler o roteiro! Só consegui dizer: “não brinca comigo” (risos). Puxa, sei que a agenda dela tá sempre lotada, que teria que ler o texto, até para saber se ia gostar e tal. E ela me dizia: “vou fazer. Pode contar comigo. Me dá o roteiro, mas já confirma: vou fazer”. E fez. Te digo isso para entender o nível de parceria que a gente tem, que é muito legal. E tem que ser assim. Diretor e ator, para contar uma história, tem que ser uma coisa junta.
Outra presença feminina marcante no filme é a da Vera Holtz…
A Vera é maravilhosa! Também já havia trabalhado muito com ela na televisão. Só que, olha só: na verdade, esse papel que a Vera faz, no original, era de um homem. Era um personagem masculino. Porém, por conflitos de agenda, o ator que havia se comprometido não pode participar. E a Vera é como a Meryl Streep: ela é capaz de fazer tudo! Nem precisei mudar os diálogos do homem para a mulher. A mesma fala, que antes era masculina, passou para a boca dela. E ela foi lá e fez isso maravilhosamente bem.
O filme trata de temas polêmicos. Você chegou a ter algum receio e abordar estes assuntos?
Muito pelo contrário. O meu papel no cinema, se Deus quiser e permitir, é falar e abordar temas polêmicos. Fico muito feliz que, nesse momento, de retrocesso político e cultural no nosso país, a gente possa ter o cinema para abrir a cabeça das pessoas e ter essa liberdade de expressão para falar sobre esses assuntos. E de uma forma como acho que deve ser falado. E como outros filmes também estão falando. Ao menos temos esse espaço no cinema. É muito importante.
Além da Mostra de SP e do Festival do Rio, Berenice Procura passou também no Mix Brasil, que é um festival voltado ao cinema da diversidade. O que você acha desses olhares de nicho nos quais o filme acaba se encaixando?
Acho pouco, na real. Penso que o filme precisa ter visibilidade. A gente faz um filme para as pessoas. Adoro o circuito de cinema de festivais, fico super feliz por termos passado por eles, e quero contar histórias que tenham alguma relevância. De alguma maneira, você estar sendo reconhecido e sendo exibido nestas janelas já é muito legal. Mas gostaria muito, de verdade, de poder mostrar esse filme para mais gente. Quero ir além destes públicos segmentados.
Dos teus primeiros filmes, feitos em Hollywood e com atores internacionais, para este, que é tão brasileiro, o que mudou no teu estilo de fazer cinema?
Que boa pergunta, hein? Acho que a gente precisa conversar mais (risos). Foi lá, nos Estados Unidos, onde aprendi como fazer cinema. Passei por todas as etapas, não só em sala de aula, mas também na prática. Infelizmente, não teria tido essa oportunidade se tivesse ficado no Brasil. Foi por causa dessa prática que o primeiro filme que fiz aqui, o Embarque Imediato (2009), dirigi e fotografei. Tenho um tesão pela fotografia dos filmes. Então, chegar no Brasil com esse know how, esse conhecimento, foi fundamental. Agora, estou tentando chegar num ponto em que possa fazer um filme que tenha uma importância para mim e que possa contar uma história relevante. Existe todo o tipo de filme, o mais comercial, a comédia, os mais diversos gêneros. Mas, no fundo, o que me interessa e o que me importo é em contar histórias humanas.
(Entrevista feita ao vivo em São Paulo)
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