Ricky Mastro nasceu em São Paulo, estudou nos Estados Unidos, e atualmente mora em Toulouse, na Europa. Ou seja, é uma figura internacional. Além disso, é um realizador comprometido com uma temática, a pauta LGBTQIA+. Desde seus primeiros curtas, como A Mais Forte (2009) e Felizes para Sempre (2009), os relacionamentos homoafetivos já estavam no centro das tramas. O mesmo se deu nos trabalhos seguintes, como Xavier (2016), o último a ser filmado no Brasil, ou os seguintes, A Ratoeira (2016) e A Tempestade (2017), feitos na França. Agora, ele volta à cena com seu primeiro longa, o drama 7 Minutos (2020), que já passou por lugares tão distantes como Taiwan e EUA, está selecionado para o Festival de Roma e chega nessa semana ao Brasil como parte do Mix Brasil 2020! E o curioso: está entre os títulos da mostra “internacional”. Para saber mais sobre o longa, a gente conversou com o cineasta, que falou sobre as inspirações dele e sua origem como realizador. Confira!
Ricky, desde o início do teu trabalho como cineasta era uma preocupação abordar questões LGBTQIA+?
No meu último ano de faculdade, cursei uma matéria chamada Teatro Latino e Feminismo. Aquilo mudou a minha vida. Foi quando comecei a perguntar sobre a minha identidade e a reconhecer a necessidade que tinha de contar as minhas histórias. Sempre tive em mim esse compromisso de buscar uma verdade em tudo que eu faço. Não só a verdade da história, mas a minha própria também. Talvez fosse um exercício ególatra (risos), mas era algo que me movia. Mas isso também é uma mentira, pois tudo é ficção. O que já vivemos, a nossa imaginação, tudo se mistura a todo instante.
Como foi o início do teu envolvimento com o cinema?
Comecei a fazer cinema em 2005, quando entrei na FAAP. O que pesou pra mim, naquele momento, é que tinha dez anos de diferença em relação aos meus colegas. Eram todos adolescentes, e eu estava quase nos meus 30. E já era militante da causa LGBT. No começo dos anos 2000, essa postura se misturava com a noite. A cultura, sexualidade e gênero estavam ligados com o que acontecia nas baladas, nas festas. Aconteceu que fui numa festa do Mix Brasil, e como era um momento que estava procurando pela minha própria identidade, estar naquela atmosfera me deixou embriagado. Cinco anos depois, já tinha isso consolidado na minha cabeça. Desde o começo tive todo o apoio dos professores, mas, infelizmente, não obtive esse mesmo retorno dos meus colegas. As reações foram totalmente diferentes.
Como você percebia o cenário sociocultural e político brasileiro quando começou a fazer cinema?
Ao menos em São Paulo, a militância e as discussões eram bastante ativas. Havia uma tentativa de formar um trajeto, que ia da Rua da Consolação até o Largo do Arouche, que seria um ‘corredor gay’. Sem saber disso, no meio de tudo estava o shopping Frei Caneca. Aconteceu que, quando cheguei na FAAP, conhecia muitos personagens da noite paulistana. Lembre que era uma época que mal existia redes sociais, o Orkut estava dando seus primeiros passos. Não existia isso de hoje. Tive a sorte, mais ou menos no mesmo período, de fazer um tour pelo Brasil. Aquilo me permitiu ver toda essa diversidade do país, principalmente no ambiente gay, e como a homossexualidade era tratada em cada lugar.
Teu cinema tem essa preocupação de refletir essas experiências?
Meu cinema é baseado na minha tese de mestrado, que concluí em 2013, e falava sobre a visibilidade. Como somos vistos, queremos ser vistos e devemos ser vistos. Desde o meu primeiro curta, o Cinco Minutos (2008), me preocupava como que esses filmes seriam vistos. Isso me levou a querer também distribuir os curtas, e a pensar num festival de cinema LGBTQIA+ em pelo menos cada estado do Brasil. Essa possibilidade de se ver na tela mexe com o nosso amor próprio. Poder ver as nossas histórias contadas faz com a gente se sinta parte de algo. Estou morando na França há seis anos, e sigo repetindo isso. Eu me sinto melhor por isso, me sinto mais acolhido.
Essa visibilidade é mais natural em lugares onde o cinema possui uma melhor estrutura?
Com certeza. Veja a situação da França, ou mesmo nos Estados Unidos, mas não só neles. Podemos pensar na Índia, ou na Nigéria, que também são alguns dos maiores polos cinematográficos do mundo. Em todos esses lugares existe essa consciência de que é importante você poder ver a sua história na tela. A gente começou a ter isso no Brasil só muito recentemente, e corrermos o risco de desaparecer por causa desse governo de agora. É importante forçarmos essa questão, pois é com a quantidade que vem a qualidade. Como atuo também como curador, pude ver isso de perto: com o passar dos anos, os filmes foram ficando cada vez melhores. E me refiro aos filmes de temática lésbica, trans, que antes praticamente não existiam.
Como despertou em ti essa vontade de, não apenas contar as tuas histórias, mas abrir espaços para outros realizadores também serem ouvidos? Desde quando trabalha como curador?
Sou curador do DIGO, o festival de diversidade sexual de Goiás, desde a primeira edição, em 2016. Já fiz curadoria do CLOSE, em Porto Alegre, ajudei a criar o Recifest, em Recife, fui curador do For Rainbow, em Fortaleza, por dois anos, e também colaborei com o festival de Santos, em SP. Aqui em Toulouse também me envolvi com algumas curadorias. Isso foi algo que procurei. Foi o Rafael Gomes que me disse, quando estava terminando a faculdade: “você não pode ser apenas diretor de cinema, tem que ser algo a mais”. Isso ficou na minha cabeça. Fiquei pensando, o que poderia fazer além? E me achei na curadoria.
Você vê a função como curador complementar ao teu trabalho como cineasta, ou é algo à parte?
Não, é tudo junto e misturado. Quando estou fazendo uma curadoria, já penso na montagem dos temas. Há sempre uma ideia por trás. Mas nunca é simples. E me ajuda a entender o que está sendo feito hoje, quais as temáticas que estão sendo abordadas. É um pensar cinematográfico que está sendo formado.
Qual a tua visão desse panorama do cinema LGBTQIA+ atual brasileiro?
Ah, melhorou muito. Felizmente. Nesse ano, fiz uma curadoria, a do DIGO, que contou com uma equivalência entre realizadores e realizadoras, por exemplo. Não foi exatamente 50/50, mas chegou perto. Isso é importante. É louvável. A temática trans passou a ser discutida de uma forma mais eficaz. E a lésbica também. Entre os meninos, há um movimento de recuperação, para não ficarem para trás. Na curadoria, tenho prazer quando descubro filmes com uma forma lapidada, que contam histórias nas quais a sexualidade é importante, mas não é a questão central do filme. É só mais uma característica, entende? Tudo isso graças aos festivais LGBT, pois eles formaram uma geração.
Há uma questão em relação ao cinema gay atual, que muitos apontam que foi “domesticado”. Você concorda?
Isso acontece porque muita gente reclama de filmes como Com Amor, Simon (2018) ou Me Chame Pelo Seu Nome (2017), títulos que tiveram maior exposição e tinham finais felizes, ou quase isso. Mas também, quem diz isso, deixa de considerar que esses longas foram exibidos em shoppings, públicos significativos os assistiram. Eles foram consumidos. E isso é importante. Então, não concordo com quem pensa assim. Acho que precisa existir de tudo, e ser visto.
No que diz respeito ao ‘lugar de fala’, um termo em voga atualmente, o que você pensa sobre isso?
Marcelo Gomes me disse que o 7 Minutos fez ele lembrar do Fassbinder. Fiquei surpreso, honrado com a comparação. Mas é algo possível pois veio de alguém que conhece aquele universo que está retratado no filme. Tenho isso como premissa, as histórias que conto precisam estar relacionadas com o meu mundo, seja de uma maneira direta, ou mesmo indireta.
O quão difícil foi para ti se colocar nos teus próprios filmes?
Acredito que, quando comecei a fazer cinema, tinha ainda uma homofobia interna. Então, espelhava as minhas histórias em outras similares, como entre duas mulheres. Era algo que eu, enquanto gay, achava que não poderia ter, então idealizava em figuras externas. Não sei se hoje em dia poderia fazer os meus primeiros curtas da mesma maneira tão descompromissada com que foram feitos. A Suzana Amaral, que na época era minha professora, uma vez me disse: “amo teu filme porque ele tem esse descompromisso”. Aquilo me fez pensar, e acho que era porque as coisas estavam na tela de um modo muito natural. Aquele era o meu universo. Foi preciso ter passado por um hiato, de 2011 a 2015, enquanto fazia meu mestrado. Não filmei nada naqueles anos. Quando voltei, tomei a decisão: agora vou contar histórias de meninos. Fiz Xavier, A Tempestade e A Ratoeira, pois queria falar sobre desejo. A partir do Xavier, posso dizer que me sinto mais livre e com a minha homofobia interna menos afetada.
Dentro da tua filmografia, onde os 7 Minutos se encaixa?
Filmar é o que me motiva, preciso contar essas histórias que estão dentro de mim. Quando comecei a escrever Os Invisíveis, que na época se chamava Jogos de Mente, fiquei sabendo desse fato sobre um menino que havia morrido no quarto de um motel, junto com o namorado. Isso foi em 2014. No ano seguinte, encontrei um dos melhores amigos dele, e pedi que me contasse o que havia acontecido com mais detalhes. Era muito chocante. O que mais me deixou intrigado foi essa falta de um fechamento, de uma conclusão, por parte dos pais. Eles não conseguiam começar o luto pois faltavam peças, não havia uma explicação razoável e concreta para o que havia acontecido. Quando uma oportunidade de financiamento se apresentou, decidi que valeria investir. Consegui um produtor associado, e vi que era a hora de fazer esse filme acontecer.
Você acha que se fosse no Brasil enfrentaria mais dificuldades para realizar esse filme?
Não. Talvez menos. Como, no Brasil, moro em São Paulo, e conheço muita gente, é provável que isso facilitasse o processo. Fazer 7 Minutos foi difícil por causa de dois elementos bastante presentes na trama: as drogas e o sexo. Entre atores, sendo eles gays ou não, sempre é problemático. Precisa discutir o beijo, o nu, ao toque um do outro. Essa questão ainda é forte. Se durante o casting os atores eram homossexuais, heterossexuais ou bissexuais, isso não sei, pois não perguntei a orientação sexual deles. Apenas fiz três perguntas: (1) você beijaria um outro ator na boca, (2) você ficaria confortável em ficar nu no set, e (3) você concordaria em fazer cenas de sexo, não explícitas, com outra pessoa do mesmo sexo? Se tivesse esses três “sins”, poderia testar aquele ator. Caso contrário, mandava embora. Sei que a sexualidade dos atores é um ponto polêmico, mas eu, como diretor, acho que é um pouco invasivo fazer esse tipo de questionamento.
Você não acredita, então, que apenas atores gays devem interpretar personagens gays, por exemplo?
Isso é algo que compete ao artista. No meu filme não havia nenhum ator gay “fora do armário”, posso dizer. Da minha parte, assumi que todos eram, no mínimo, bissexuais. E nos bastidores, a equipe de produção, tinha de tudo. A diversidade era forte. Nas filmagens, no entanto, só dizia o que precisava ser feito: “olha, você vai beijar fulano”, ou “agora beltrano e ciclano vão para a cama juntos”, e era isso.
7 Minutos é o teu primeiro longa. É também uma declaração de que esse é o teu cinema, é o tipo de história que você quer contar?
Não. Acho que é uma coisa meio arrogante dizer “esse é o meu cinema”. O que posso dizer, apenas, é que era uma história que queria contar. E daqui pra frente vou continuar contando histórias LGBTQIA+. Meus próximos três projetos, que já estão desenhados, seguirão nessa temática. Esses dez anos de noite que tive influenciaram bastante as minhas histórias. Os Invisíveis, que mencionei antes, é sobre quatro amigos, todos gays. Lorenzo, um outro roteiro que estou trabalhando, é sobre um rapaz hetero que descobre a homossexualidade do avô, no sul da Itália. Ou seja, tem muita coisa a ser dita ainda.
(Entrevista feita por Skype entre Brasil e França em 2020)
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