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ALERTA: contém spoilers!

Inspirado em obras de ficção científica que miram o espaço sideral para observar a natureza humana, o roteiro de A Chegada (2016) tece uma trama enigmática sobre a vinda de alienígenas à Terra para, com isso, desatar o nó existencial que amarra Louise Banks (Amy Adams). Conceituada linguista, ela é convocada pelas Forças Armadas norte-americanas para estabelecer comunicação com a nova espécie. O contato imediato irá lhe revelar não apenas o motivo da visita intergaláctica, mas também lhe proporcionará uma nova percepção sobre si mesma e seu futuro. Nesse sentido, o filme aborda a questão do tempo e questiona o quanto estaríamos atrelados ao nosso destino.

O longa dirigido pelo canadense Denis Villeneuve tem início com cenas acalentadoras de Louise ao lado de sua filha recém-nascida, que cresce até adoecer e falecer ainda adolescente. Na sequência, Louise surge aérea, introspectiva, vagando entre casa e universidade, mal reagindo a um mundo perplexo com a chegada de 12 naves espaciais ao planeta. Sua letargia cessa apenas quando os militares batem a sua porta exigindo ajuda.

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Especialista em línguas, sistemas sígnicos capazes de promover comunicação e enraizamento sociocultural, Louise é incumbida de traduzir o que dizem moluscos gigantes cinzentos que flutuam em uma névoa branca dentro da aeronave extraterrestre. Mais do que decodificar a língua alienígena, fundamentada em representação visual desvinculada de palavras, a pesquisadora interpreta os muitos traços visuais produzidos pelos ETs. Criados com fumaça, os signos linguísticos se apresentam como círculos rebuscados e incompletos contendo imagens dentro de imagens, como se fossem parte de um labirinto calidoscópico capaz de oferecer uma pluralidade de sentidos.

O desafio linguístico cósmico interrompe o torpor solitário da personagem, que para resolver o problema entre espécies conta com a ajuda de Ian Donnelly (Jeremy Renner), matemático cuja abordagem do caso é diametralmente oposta a de Louise, e ainda assim complementar. Louise e Ian se conhecem em um helicóptero a caminho da nave alienígena. Opostos, os dois logo se atraem.

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Para contatar os alienígenas, a equipe embarca na nave cuja forma lembra uma rocha vertical gigante com sistema gravitacional independente do da Terra. Dentro do objeto voador, terráqueos perdem seu eixo e se tornam praticamente improdutivos, sem conseguir realizar a missão – exceto Louise, que gradativamente se integra aos visitantes.

Ao obter aproximação com esses seres misteriosos, a pesquisadora estranha quando começa a experimentar visões de si mesma ao lado de uma menina. A personagem começa a vivenciar fragmentos de uma memória que parece não fazer sentido. Ouve ruídos, sons e ecos de palavras ou frases que a atravessam aleatoriamente. Louise percebe uma relação direta desses fenômenos com os alienígenas. Olhares, gestual, falas e silêncios de Amy Adams apontam para a cumplicidade que sua personagem constrói com os visitantes. Em um momento de delírio, a linguista chega a ver e falar com um ET dentro de uma tenda militar – cena muito semelhante àquela da aranha gigante dentro da sala em O Homem Duplicado (2013), sendo que em ambos os casos as figuras bestiais simbolizam as angústias e obsessões que se impõe aos personagens. Já em outro momento de A Chegada, Louise diz à filha, durante uma de suas visões, que foi capaz de prever um fato ainda não ocorrido até então, e que isso levou ao afastamento do pai da garota. Aos poucos, surge a sensação de que as imagens vivenciadas por Louise podem não ser exatamente memórias.

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Círculo, pilar e centro do mundo

É interessante que em A Chegada os extraterrestres se comuniquem por meio de círculos incompletos. Ao estudar símbolos antigos, Mircea Eliade explica que no chamado “simbolismo do centro”, comum a culturas arcaicas e ainda presente na sociedade contemporânea, esse “centro” não é um ponto geométrico ou geográfico definido, mas sim um “centro” simbólico, o próprio “centro do mundo”, lócus de criação (ou fundação) do mundo em que vivem todos aqueles que compartilham desse simbolismo fundante de civilizações. Sendo a criação do homem decorrente da fundação do próprio mundo, o simbolismo do centro também diz respeito à própria fundação e/ou condição do sujeito no meio em que vive.

Conforme narrativas míticas antigas, esse “centro” seria o local onde o cosmo converge, dando origem ao mundo. Poderia ser também o local divino por excelência, próprio a hierofanias. Assim, “centros do mundo” movimentam imagens simbólicas pregnantes, que ganham expressão e propõem sentidos não apenas em narrativas míticas, mas também em produtos midiáticos como filmes, sendo ambos alimentadores do imaginário humano.

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Figurativamente, o círculo pode representar o “centro do mundo” simbólico, ainda que este se apresente em mitos mais frequentemente como um pilar ou uma coluna – ambos capazes de unir os três níveis cósmicos (Terra, Céu e Mundo Inferior). Visualmente, esses “pilares cósmicos” se assemelham ao formato das naves espaciais e do módulo de transporte monolítico que aparecem no longa-metragem de Villeneuve.

Portanto, há em A Chegada imagens simbólicas movimentadoras desse antigo e importante simbolismo do centro, fortemente ligado à ideia de fundação do mundo e criação do homem, sendo os círculos incompletos (base linguística alien) e o pilar cósmico (que serve de transporte extraterrestre) dois bons exemplos. Curiosamente, os alienígenas flutuantes oferecem círculos rompidos e incompreensíveis à terráquea (porém aérea) Louise, equiparando-os nitidamente à própria incompletude da vida da pesquisadora.

Se círculos estimulam sentidos múltiplos de criação, fundação, completude, união, aliança, continuidade e solidez, A Chegada deixa claro que esses são atributos pouco consistentes em Louise. Assim, seu desafio de traduzir círculos incompletos é também a dificuldade de interpretar sua vida vazia de sentido. Para a personagem, a constituição de seu próprio “centro do mundo” garantiria a solidez de sua vida e uma possibilidade de enraizamento frente a uma existência aérea.

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Solitária e desmotivada, a linguista que fala com ETs mal se comunica com humanos. Fora de seu próprio eixo terreno, Louise vaga sem um “centro de mundo” definido. Consegue se centralizar apenas dentro da nave espacial, na presença de extraterrestres, flutuando juntamente com eles em um vôo ascensional luminescente e epifânico. Neste momento transcendental, etéreo, Louise assimila a arma (que também poderia ser “ferramenta” ou “presente”) prometida pelos alienígenas: a capacidade de perceber o futuro.

A personagem compreende sua tragédia mundana quando percebe que as visões de uma vida em família, da qual Ian faz parte como pai da menina morta, não eram fatos de um passado recente, mas sim percepções de algo que está por vir – ou seja, a constituição de seu próprio centro simbólico representado nitidamente pela família. Na abertura do filme, então, vemos cenas do futuro da pesquisadora com sua filha, e não cenas pretéritas. É por isso que Louise não faz menção de reconhecer Ian durante o encontro no helicóptero, visto que estavam se conhecendo naquela ocasião. O relacionamento entre ambos tem início ali e se encerra no futuro próximo, antes da morte da filha.

O futuro de Louise, portanto, foi sendo revelado gradativamente durante o contato com a espécie extraterrestre. E, apesar de ser marcado pela morte, será trilhado por Louise como se esse fosse seu próprio destino. E não era mesmo?

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é jornalista, doutorando em Comunicação e Informação. Pesquisador de cinema, semiótica da cultura e imaginário antropológico, atuou no Grupo RBS, no Portal Terra e na Editora Abril. É integrante da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul.
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