14 fev

Hermanoteu na Terra de Godah :: “O teatro nos ensina que temos de saber fazer um pouco de tudo”, diz Jovane Nunes

Jovane Nunes é um dos principais nomes da Companhia de Comédia Os Melhores do Mundo. E um dos maiores sucessos dessa trupe de comediantes é Hermanoteu na Terra de Godah, peça levada pela primeira vez aos palcos em 1995 e que, desde então, arregimentou uma multidão aos teatros do Brasil. A história do peregrino Hermanoteu, contemporâneo de Jesus Cristo incumbido por um anjo de encontrar uma terra desconhecida, agora está chegando aos cinemas. Além de viver um impagável imperador César (entre outros personagens), Jovane é um dos roteiristas encarregados de adaptar a peça às lógicas do cinema. Por isso mesmo, uma de nossas principais curiosidades foi justamente a respeito dos cuidados que a equipe teve para fazer com que esse sucesso estrondoso nos palcos também funcionasse nas telonas e nas telinhas. Confira abaixo a nossa entrevista exclusiva com Jovane Nunes sobre Hermanoteu na Terra de Godah (2021), na qual há também alguns causos curiosos da etapa das filmagens.

Qual a maior preocupação que vocês tiveram ao adaptar a peça aos cinemas?
Bom, a peça sempre foi um pano de fundo para a crônica da sociedade, do acontecimento da semana. Isso é um problema para o cinema. Problema, porque o cinema é atemporal, você tem de fazer um filme que daqui a cinco anos faça sentido para quem assiste, né? Então você não pode se basear na piada do dia. Aí a gente entra numa questão estrutural de roteiro. O teatro é interpessoal, as coisas acontecem num lugar estático. Às vezes você muda o cenário, mas o foco é sempre no diálogo. Os personagens dialogam o tempo todo e, portanto, a ação se dá pela conversa. No cinema o importante é fotografado, o visto naquele momento. Tanto que o tempo do teatro é o presente do indicativo, pois as coisas acontecem no presente, mesmo quando você tem flashback. No cinema, é melhor ver o personagem fazer alguma coisa do que ter ele contando essa coisa. No teatro, o Hermanoteu era um personagem muito passivo, ele basicamente ficava peregrinando. O Hermanoteu é quase uma A Praça é Nossa, mas sem praça (risos). E aí, para os cinemas, o trabalho do roteiro foi criar uma trajetória do herói. Aliás, falando em roteiro, acho que faltam escolas de roteiro no Brasil. A gente precisava de mais, sabe? Nossa indústria precisa de roteiristas.

E dentre os desafios da adaptação também havia essa necessidade de manter certas coisas, como bordões e os personagens clássicos, afinal vocês também estão dialogando com os fãs, correto?
Sem dúvida, tinha esse desafio de equilibrar os dois mundos. Precisávamos contemplar quem nunca tinha ouvido falar de Os Melhores do Mundo e também os nossos fãs mais empenhados. Por isso mesmo, mantivemos os bordões, aliás, tem ali também bordões de outras peças nossas. Acredito que conseguimos atingir esse equilíbrio.

E como foi o trabalho com o Homero Olivetto, o diretor? Ser dirigido para teatro e cinema tem inúmeras diferenças, então como se deu essa relação de vocês com o Homero?
Somos atores de teatro de comédia. Durante anos você exagera no movimento e na entonação. Então, acho que o primeiro desafio do Homero foi trazer esse tom para o cinema. Tivermos oficinas de interpretação para conter esse ímpeto todo, sabe? O Homero virou um amigo, um parceiro, um irmão nosso. Ele é um cara espetacular. Primeiro, por que é talentosíssimo e cuidadoso. Ele tem um cuidado enorme com as coisas. Ao mesmo tempo, ele nos deu uma liberdade muito grande, algo fundamental para o ator de comédia. Não que o set vire uma bagunça, bem longe disso. Porém, precisamos de liberdade para nos divertir. No fim das contas, a gente faz tudo isso para se divertir.

E a experiência deixou um gostinho de “quero mais”? Há outros projetos de novos filmes baseados em sucessos de Os Melhores do Mundo?
Temos. Estamos trabalhando numa adaptação do Notícias Populares. Estamos preparando uma coisa muito especial para o Joseph Climber nesse filme, numa dinâmica completamente diferente da peça. Mas, isso depende muito da carreira do Hermanoteu na Terra de Godah. Talvez haja antes a demanda de uma sequência. Quem sabe? Nós queremos. Não sei se você percebeu isso no filme, mas na hora da Santa Ceia o Hermanoteu bebe no Santo Graal. E quem bebe no santo Graal vira imortal. Então, até podemos brincar com Hermanoteu ao longo da História.

Já estou vislumbrando aqui um universo cinematográfico Os Melhores do Mundo…
Por que não, né?

E que história é essa de que vocês fizeram chover no Deserto do Atacama e colocaram fogo no Rio de Janeiro durante as filmagens?
São as coisas que acontecem com o comediante. Você chama um comediante para jantar, alguma coisa vai acontecer de errado, alguém vai tropeçar, algo assim (risos). Tem um demônio da comédia que persegue a gente. O Deserto do Atacama é o lugar onde menos chove no planeta. Queríamos aquele céu que não tem nuvem, o árido. Pois, quando chegamos ao Chile descobrimos que chovia tanto na região onde filmaríamos que a água destruiu um pedaço do asfalto. E o exército simplesmente bloqueou a passagem para lá. Argumentamos que faríamos um filme e nos deixaram passar. Chegando à locação, era lama que não acabava mais. Fomos com uma equipe reduzida. E o jogo de cintura do qual precisamos por lá nós devemos ao teatro. O teatro nos ensina que temos de saber fazer um pouco de tudo. Você é maquiador, figurinista, cenógrafo, é tudo. Mas, voltando ao clima, felizmente, no outro dia o tempo mudou. Já no Rio, estávamos filmando numa pedreira aquela cena da arena romana. Pois, o local é cercado por uma mata que começou a pegar fogo. Saímos correndo, recolhendo figurino, cenário, chegou carro de bombeiro, uma confusão danada. As labaredas começaram por volta do meio-dia e o fogo foi controlado às 3 da tarde. O produtor falou que não poderíamos perder a diária e, de fato, cinema é muito caro. E, novamente na guerrilha, nos preparamos e fizemos a cena. Coisas que somente acontecem com comediantes.

Marcelo Müller

Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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