28 mai

Elcio Cornelsen :: “O romance Berlin Alexanderplatz traz uma crítica aos riscos dos extremos políticos, algo ausente no filme”

Dentro do meio acadêmico, Elcio Loureiro Cornelsen é conhecido enquanto especialista em Germanística, tendo diplomas de doutorado em teoria literária e língua alemã, além de pós-doutorado em História comparada. Agora, o professor aplica estes conhecimentos à história do cinema alemão, tema da série de encontros Kinematik, do Goethe-Institut SP.

Durante as aulas gratuitas (e virtuais, durante a pandemia de Covid-19), Cornelsen e o professor Donny Correia apresentam as origens do cinema alemão, discutindo estética, discurso, língua e a relação entre os filmes e a sociedade alemã da primeira metade do século XX. O terceiro encontro, focado na fase política e nos embates realistas do cinema alemão, debate títulos como O Anjo Azul (1930) e Berlin Alexanderplatz (1931). A aula ocorre dia 1 de junho, via Zoom, entre 19h e 21h. As inscrições podem ser feitas no site do Goethe-Institut. O Papo de Cinema conversou com Cornelsen sobre este recorte histórico:

 

Elcio Cornelsen

 

De que modo os filmes apresentados no terceiro encontro podem ser lidos enquanto premonitórios ou sintomáticos da adesão alemã às ideias totalitárias?
Em geral, as produções cinematográficas costumam revelar muito de seu contexto social de emergência. Não são, necessariamente, premonitórias, mas podem, a posteriori, serem assim interpretadas. Em parte, os filmes apresentados evidenciam determinadas latências que levaram segmentos sociais à adesão a ideias totalitárias. Neste caso, o plural não é fortuito, pois os extremos políticos, com colorações ideológicas distintas, contribuíram para aquele fenômeno que o jornalista e dramaturgo britânico John Willett bem definiu em um estudo do início dos anos 1980 sobre arte e política no período dos estertores do Kaiserreich (o Império) ao fim da República de Weimar, abrangendo os anos de 1917 a 1933: Explosion der Mitte (explosão do centro).
O título em alemão do livro de John Willett sintetiza o que ocorreu ao longo da República de Weimar: a destruição gradativa do centro de equilíbrio de forças através de ações dos extremos políticos, onde as instituições democráticas e o diálogo no jogo político foram sendo comprometidos. O quadro é muito complexo, de modo que seria impossível abordá-lo em poucas linhas. Todavia, basta nos lembrarmos que a República de Weimar, ao longo de sua existência, teve dois presidentes bem distintos em seus propósitos, ambos encerrando seus mandatos ao falecerem: o socialdemocrata Friedrich Ebert (1919-1925) e Paul von Hindenburg (1925-1934), Marechal de Campo da Primeira Guerra Mundial que, mesmo a contragosto, nomearia Hitler em 30 de janeiro de 1933 ao posto de chanceler do Reich.
Por si só, essa constelação diz muito: a República de Weimar foi um período de muita instabilidade econômica e política. Se Ebert representava a socialdemocracia como sendo idealizadora do jogo democrático no modelo republicano de Weimar, o Marechal de Campo representava uma continuação de valores vigentes na época do Império, que não acompanhava, necessariamente, o espírito democrático da jovem república. Os filmes apresentados coincidem com esse período em que Hindenburg ocupou a função de Reichspräsident, dentro do princípio do Executivo bicéfalo da Constituição de Weimar, dividindo as funções e tendo o poder de nomear o Reichskanzler, o chanceler do Reich. Todavia, mesmo no caso dos filmes apresentados, devido à complexidade do quadro, deve-se ter cuidado com generalizações.

 

O Anjo Azul (1930)

 

O Anjo Azul foi muito debatido pelo retrato da sexualidade e da composição de Marlene Dietrich. Que retrato de costumes Sternberg faz da época?
Esse filme não será analisado por mim, mas sim pelo Prof. Donny Correia (USP). Entretanto, gostaria de chamar à atenção para um aspecto: não se deve esquecer que o filme O Anjo Azul é uma adaptação fílmica do romance Professor Unrat, de Heinrich Mann, publicado em 1905. Esse é um dado significativo, pois deve ter motivado o cineasta Josef von Sternberg a retomar, de maneira crítica, como já o fizera Heinrich Mann em relação ao Império, certa representação que permitisse estabelecer relações com o contexto de Weimar e, sobretudo, com a continuidade de valores não condizentes com o senso democrático em sua plenitude.

 

Berlin Alexanderplatz dominou o imaginário alemão, tendo recebido uma nova refilmagem recente. De que maneira o clássico dialoga com a Alemanha de hoje? Considera esta história um conto moral – ou moralista?
Não posso avaliar o filme de Burhan Qurbani, pois ainda não tive oportunidade de assistir à obra na íntegra. Entretanto, há algo a se considerar: mais uma vez, lida-se com uma obra literária como base para adaptação, o romance Berlin Alexanderplatz: a história de Franz Biberkopf (1929), do médico e escritor alemão Alfred Döblin. A primeira adaptação fílmica data de 1931 e contou com a participação de Döblin como co-roteirista. Sua obra é tudo menos moralista. Todavia, muito do romance não se adequou ao filme, por diversas razões. Uma delas é transcriar da literatura para o cinema uma ampla rede de tramas que possam ser sintetizadas em 90 a 120 min, tempo médio de duração de um longa metragem.
Lembremos que Berlin Alexanderplatz, dirigido pelo cineasta Phil Jutzi, tem 90 min. Décadas mais tarde, em 1980, o famoso cineasta Rainer Werner Fassbinder lançaria a série para TV Berlin Alexanderplatz com um total de 15h 30 min. Fassbinder pode explorar muito mais o romance em detalhes para produzir o roteiro da série do que a versão de 1931. Outro exemplo disso é a peça de teatro Berlin Alexanderplatz (1999), de Oliver Reese, com 4h de duração. Além disso, o filme de 1931 limitou-se a explorar o enfoque na criminalidade e na passionalidade, no submundo, talvez, orientando-se em outros filmes da época que também possuíam tal foco, como Asfalto (1929), de Joe May, ou A Caixa de Pandora (1929), de Georg Wilhelm Pabst. Aliás, este último filme é baseado na peça de teatro homônima, de 1904, de Frank Wedekind.
Mais uma vez, assim como ocorreu com o filme O Anjo Azul (1930) e o romance Professor Unrat (1904), a adaptação da peça de Wedekind podia atualizar críticas a valores vigentes no Império, que ainda encontravam eco no contexto da República de Weimar. Portanto, deve-se considerar certos fatores que acabaram condicionando a adaptação fílmica de Berlin Alexanderplatz, lançada em 1931: o formato, a escolha de determinados temas já explorados no cinema da época, os novos desafios do cinema sonoro etc. O romance, por exemplo, traz uma crítica evidente aos riscos de se aderir a extremos políticos, algo ausente no filme, pois o filme foi “esvaziado” dessa temática, com consentimento do próprio escritor Alfred Döblin, uma vez que foi seu co-roteirista.

 

Berlin Alexanderplatz (1931)

 

Podemos falar num movimento estética e discursivamente coerente em relação às obras realistas retratadas neste encontro?
O chamado “novo Realismo” dos anos 1920, em geral, é considerado uma tendência na literatura, nas artes e no cinema em que há uma orientação pela representação de quadros sociais a partir de elementos de referencialidade. No caso do cinema, costuma-se destacar duas vertentes: a dos filmes operários, como, por exemplo, Viagem de Mãe Krause para a Felicidade (1929), de Phil Jutzi, e Kuhle Wampe, ou a Quem Pertence o Mundo (1932), de Slátan Dudow. Aliás, dois filmes que serão abordados no Kinematik #3; os chamados filmes de Milieu, em que há uma determinada ambientação social, como, por exemplo, Os Marginais (1925), de Gerhard Lamprecht, A Rua sem Alegria (1925), de Georg Wilhelm Pabst, e Gente no Domingo (1928), de Robert Siodmak e Billy Wilder. Enquanto os filmes operários são fortemente influenciados por políticas partidárias – Viagem de Mãe Krause para a Felicidade e Kuhle Wampe foram produzidos pela companhia cinematográfica Prometheus, ligada ao Partido Comunista –, os filmes de Milieu eram, em geral, criticados por não se aprofundarem nas causas dos problemas sociais, enfocando ambientes sociais de pobreza ou degradação como algo exótico.

Bruno Carmelo

Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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