Crítica

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Algo que a literatura e o cinema nos ensinaram é que o futuro será um lugar difícil de viver. Seremos vigiados constantemente e o poder totalitário dos governos nos esmagará como insetos. Bom seria se tivéssemos certeza de que isso só acontece na ficção, mas a realidade já nos deu exemplos de que o porvir pode ser tão sombrio e distópico quanto os livros e os filmes que imaginam o dia de amanhã. Embora a produção espanhola Vulcania não ambiente em que tempo a trama se passa, as referências à 1984, de George Orwell, e o fato de o protagonista apresentar poderes especiais nos levam a crer que o diretor José Skaf concebeu uma obra que, se não é ambientada no futuro, ao menos faz a pergunta que tantos já fizeram: “e se vivêssemos daquele jeito”?

Na trama, assinada por Skaf ao lado de Diego Soto, conhecemos Jonas (Miguel Fernandés), um homem devastado pela morte da mulher e do filho em um incidente estranho. Ele vive em uma comunidade voltada à metalurgia, isolada e dividida, dominada por duas famílias. Quem nasce de um lado, não pode se misturar com o outro. O fato é que a esposa e o filho de Jonas morreram junto a dois homens de outra família e em situação não explicada pelos governantes. Ele quer ir ao fundo disso e busca a ajuda da viúva de um daqueles sujeitos, Marta (Aura Garrido). A mulher, no entanto, tem outros problemas – como o fato de estar grávida, mas não de seu falecido marido, o que gera falatórios na comunidade. O cerco começa a fechar para Jonas, que terá de enfrentar a tudo e todos pela verdade. Ele tem uma carta na manga, porém. Depois de tanto tempo trabalhando no “buraco”, um local onde a proximidade com o metal é extremamente perigosa, aquele homem passou a mover metais com o poder de sua mente. Isso acaba sendo uma vantagem na hora de planejar sua fuga.

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Para uma história com orçamento limitado, José Skaf faz milagres no desenho de produção, concebendo uma comunidade crível, dividida entre aquelas duas famílias antagônicas. Tudo é muito cinza, representando aquele universo voltado ao fogo e ao metal, com ideias interessantes no que tange o congelamento no tempo daquele local. Poderíamos estar no passado, ao observarmos as roupas e a tecnologia; mas o presente ou futuro não poderiam ser descartados, visto o desenrolar da trama. Skaf não esconde que tomou emprestado alguns conceitos empregados por M. Night Shyamalan em A Vila (2004), embora o plot twist do diretor indiano seja bem diferente do que vemos aqui.

Mesmo com produção esmerada, o roteiro carecia de algumas revisões. Um ponto que parecia importante, mas demandava maior desenvolvimento é a divisão da comunidade. Embora seja compreensível que em uma terra dividida seja mais fácil a sua dominação, o conceito não é bem explorado, parecendo mais um empecilho para que Jonas se aproxime de Marta. O próprio drama desta mulher, que é abusada sexualmente pelo governador do local, Sr. Valoquia (José Sacristán), é subaproveitado no roteiro. Nem a sórdida surpresa do final, revelando laços mais próximos entre ele e Marta, parece ganhar a dimensão necessária.

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Ainda que exiba alguns problemas, ao menos o elenco – como um todo – convence em seus papéis, mesmo que a tridimensionalidade falte na maioria dos personagens. Marta é a única que ganha um pouco de profundidade, através do drama do abuso. Nem Jonas, que tem uma cicatriz enorme pela falta de sua esposa e filho, consegue maior desenvolvimento do que isso. Eles são peças de um jogo de tabuleiro comandado por José Skaf, um cineasta estreante que tem tudo para evoluir em seus próximos trabalhos, bastando tomar o mesmo cuidado que teve na criação do seu universo com os personagens que o habitarão.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista, produz e apresenta o programa de cinema Moviola, transmitido pela Rádio Unisinos FM 103.3. É também editor do blog Paradoxo.
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