Crítica

Atributo dos pássaros, o voo pleno é um feito quase inalcançável ao homem. A bordo de aeronaves não há como experienciar a liberdade que advém da vitória momentânea contra a onipotência da gravidade. Brewster McCloud (Bud Cort) decide estudar minuciosamente as aves, a fim de posteriormente viabilizar um equipamento que permita imitá-las, ou seja, para ganhar os céus. Diferentemente do que se pode imaginar, Voar é com os Pássaros não se curva ao potencial poético/metafórico dessa premissa, pois dela extrai apenas o essencial, quiçá seu lado mais banal e óbvio. Robert Altman evita chocar superficialmente a vontade do protagonista com os poderes que tentam impedi-lo. Brewster constrói um cenário para si, em que nem sempre a plausibilidade impera, mas cuja dinâmica particular é bastante coerente com os anseios de se viver inteiramente uma utopia. Enquanto ele assume ares de mito redivivo, os demais personagens são meros adornos nessa jornada de autoconhecimento.

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Brewster é visitado por uma amiga que literalmente goza ao ouvir seus suspiros no treino para suportar o peso das asas artificiais. Não há sexo entre eles. A perda da inocência poderia (pôde) ocasionar o desmantelamento do conjunto de virtudes imprescindíveis ao sublime. Voar é com os Pássaros, além de uma sátira à pretensa malícia das forças reguladoras, contém um incisivo deboche à estrutura coercitiva de uma sociedade que perpetua seus valores ridicularizando ou, mais comumente, castrando o diferente. Frank Shaft (Michael Murphy), o celebrado policial designado para resolver os casos de estrangulamento, é um exemplo dessa autoridade supervalorizada, tão agarrada à autoimportância que perde a essência de sua função. Altman não cede às amarras, evitando ao máximo uma progressão narrativa marcada pelo encadeamento estritamente lógico das situações. Essa emancipação cobra um preço, sobretudo do espectador, que não tem vida fácil para extrair da trama seus porquês.

As intenções de Voar é com os Pássaros são cifradas, às vezes demasiado. O filme se oferece relutantemente a leituras imediatas, embaralhando as certezas logo na sequência de falsamente tê-las estabelecido. É um jogo complexo esse proposto por Robert Altman. Ele borra completamente os limites entre o real e a fábula, fazendo as duas instâncias dialogarem, ocasionalmente, até num mesmo plano. O sarcasmo é elemento onipresente, por meio do qual o cineasta expõe as hipocrisias e as fissuras, como na engraçada cena do enterro do policial que tentou extorquir Brewster. Nela testemunhamos desde os impulsos de sinceridade de um colega diante do lamento embusteiro ao flerte prematuro da viúva com um homem de farda. O crime é o sintoma mais evidente da disfunção representada em sentido amplo por Brewster. Não há uma explicação totalmente esclarecedora e racional sobre a matança, muito menos a respeito da utilização do excremento enquanto marca registrada do assassino serial.

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Rene Auberjonois interpreta um ornitólogo que entrecorta o filme quebrando a quarta parede com suas explanações que dizem respeito às características dos pássaros, algo prontamente relacionado por Altman ao comportamento incomum dos personagens. O expediente, inicialmente curioso, logo perde a eficácia em virtude da repetição e da decorrente previsibilidade dos efeitos. Por sua vez, Louise (Sally Kellerman) funciona como uma espécie de anjo da guarda, presença enigmática encarregada de ora aconselhar Brewster, ora atuar efetivamente para proteger seus interesses. Voar é com os Pássaros cativa, principalmente, pela singularidade com que concatena a realidade e o lúdico. Contudo, perde-se em alguns momentos, justamente por conta da exacerbação do andamento deliberadamente truncado. A audácia de Altman é análoga à de Brewster e à de Ícaro, lenda evocada indiretamente. Todavia, embora falhe em certa medida, o cineasta não sucumbe inteiramente ao aproximar-se do sol.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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