Crítica

A “banalidade do mal” é com certeza o termo mais emblemático de toda a obra da filósofa política Hannah Arendt. Ironicamente, com o passar das décadas, a expressão parece sofrer cada vez mais com a banalização, sendo utilizada de forma aleatória ou fora de contexto em várias situações. É buscando um resgate da essência do termo, bem como do trabalho de Arendt de um modo mais amplo, que a cineasta israelense Ada Ushipz realiza este Vida Ativa: O Espírito de Hannah Arendt. O título faz referência a outro conceito cunhado pela alemã de origem judaica em seu livro A Condição Humana, algo que de imediato denota o tom professoral do documentário.

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Estruturalmente, o longa segue um padrão cronológico no que diz respeito ao lado particular da vida de Arendt, através de fotografias e filmes caseiros de família, enquanto foge um pouco desta ordem em relação aos estudos da autora. O elemento que liga estas duas linhas, e que serve de guia da narrativa como um todo, é a locução em off feita pela atriz Alison Darcy, com trechos de alguns dos livros mais importantes e cartas de Arendt. As correspondências dividem-se entre as trocadas com seu marido, Heinrich Blücher, e com o filósofo alemão Martin Heidegger, de quem foi aluna e também amante durante anos. A relação intelectual e afetiva com Heidegger, aliás, é o foco da primeira controvérsia exposta pelo longa, já que mesmo após as ligações de seu mentor com o nazismo, a admiração de Arendt se manteve.

Todo o primeiro ato funciona quase como uma aula introdutória, preparando terreno para um debate mais concreto nos atos seguintes. É a partir deste ponto que ganha grande destaque o evento midiático em que foi transformado o julgamento de Adolf Eichmann, que ficou conhecido como o executor-chefe do Terceiro Reich na Alemanha Nazista. Transmitido ao vivo para todo o mundo pela TV israelense em 1961, este processo foi o que levou Arendt a escrever o livro Eichmann em Jerusalém: Um Relato Sobre a Banalidade do Mal, difundindo, assim, o notório termo citado no início do texto. O posicionamento em relação à consciência de Eichmann sobre a própria culpa é provavelmente o ponto mais polêmico da tese da filósofa.

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Para explorar este tema, a diretora Ushipz convoca teóricos renomados de áreas, formações e pensamentos diversos. Deste modo, são apresentados argumentos defendendo o posicionamento de Arendt, como também outros contestando e apontando inconsistências, ainda que em nenhum dos casos as opiniões cheguem a ser radicais, mantendo sempre um nível de moderação. Esta pluralidade do debate talvez seja a maior virtude do trabalho de Ushipz, que apesar de uma óbvia admiração por Arendt, deixa espaço livre para que o espectador analise os pontos de vista apresentados e reflita para tirar suas próprias conclusões sobre os mais variados assuntos, como a visão sobre os governos totalitaristas, a perda de identidade dos refugiados de guerra, etc.

Este espaço para a reflexão compensa em boa parte a realização convencional da cineasta, que acerta ao optar por não criar dramatizações de fatos da vida de Arendt, mas que em contrapartida não apresenta surpresas ou detalhes que diferenciem seu trabalho. Algumas ferramentas, como as imagens bárbaras do holocausto que ilustram certas sequências, apesar de quase inevitáveis, soam repetitivas, enquanto as passagens narradas das cartas e livros, quando isoladas do contexto geral, perdem um pouco de sua força. Obviamente, não seria possível esmiuçar completamente o conteúdo denso e complexo do trabalho de Arendt em pouco mais de duas horas, mas Ushipz poderia conseguir se aprofundar mais nos tópicos, assim como nas motivações de sua biografada.

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Talvez, por esse motivo, os momentos mais interessantes do longa sejam aqueles que mostram uma entrevista da própria Arendt para uma TV alemã em 1964. Nela podemos conhecer um pouco mais da personalidade da filósofa, como seu senso de humor, por exemplo. São momentos que ajudam a humanizar uma figura icônica e que tornam mais fácil compreender o porquê de ter se tornado um inegável símbolo inspirador, mesmo que esta inspiração atinja muitas pessoas que conhecem sua história de modo apenas superficial. Longe de ser um documentário definitivo, Vida Ativa: O Espírito de Hannah Arendt consegue ultrapassar satisfatoriamente esta superficialidade, impedindo que a banalização chegue à imagem de Arendt.

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é formado em Publicidade e Propaganda pelo Mackenzie – SP. Escreve sobre cinema no blog Olhares em Película (olharesempelicula.wordpress.com) e para o site Cult Cultura (cultcultura.com.br).
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