Crítica

Ao longo da história, artistas utilizaram - e continuam utilizando - tempos turbulentos como intenso combustível de obras dispostas a ponderar, justamente, sobre eras de inconstância. Os Estados Unidos viviam em ebulição no decorrer dos anos 1950: crises pós-Segunda Guerra Mundial, a sombra do comunismo, o ocaso do famigerado McCarthysmo, a Guerra Fria, etc. Don Siegel, um dos célebres mentores de Clint Eastwood, lançou então em 1956 aficção científica Vampiros de Almas, um marco da cinematografia estadunidense engajada, e, sem dúvida, herdeira desta tradição de obras que falam a (ou de) seu tempo.

Em sucintos oitenta minutos, vê-se a paranoia crescente na pequena localidade de Santa Mira pelos olhos do médico, descobridor de um plano alienígena que consiste em substituir humanos por seres sem emoções, ocos internamente. Alegórico, Vampiros de Almas é espécime raro de cinema galgado na metáfora, no qual o subtexto emerge ao ponto de subjugar o que está num primeiro plano. É quase automática a associação entre a conjuntura político/social americana da época com este cenário de pânico instaurado diegeticamente. Incerteza e desconfiança generalizada surgem na tela aludindo à caça aos comunistas “comedores de criancinhas”. Seres sem vida e carentes de emoções, massificados, podem ser os que dão lugar à réplica extraterrestre, bem como aqueles que veem o país naufragar num cenário caótico e, mesmo assim, preferem alienar-se confortavelmente em suas posições neutras.

Don Siegel, artesão dos mais subestimados, cria um estado de histeria comunitária moldando o preciso roteiro de Daniel Mainwaring, Sam Peckinpah (ele mesmo) e Richard Collins, auxiliado pela belíssima fotografia em preto e branco de Ellsworth Fredericks (que, aliás, evidencia sobremaneira contrastes entre luz e sombra). Com estética de filme B, Vampiros de Almas não se presta ao superficial, já que por trás da fabulação e das artimanhas narrativas, residem desejos (não tão recônditos) de transmitir ao público a crítica travestida de ficção científica, gênero que em tempos áureos foi um dos principais veículos de metáforas acerca da sociedade que se prestava a refletir.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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